“Deus e o diabo na terra do sol” (1964) é um filme essencial não apenas para o cinema nacional, mas pela significância que tem num contexto maior na Sétima Arte. O Brasil, que antes entrara no mapa cinematográfico através de representações ligadas ao entretenimento sem grandes consequências como Carmen Miranda ou Zé Carioca, teve no filme de Glauber Rocha o seu momento de ápice de protagonismo crítico perante as possibilidades técnicas e ideológicas do fazer fílmico, influenciando cineastas ao redor do mundo na medida em que fora influenciado por outras propostas como a Nouvelle Vague francesa ou o Neorrealismo italiano para desenvolver a sua própria.

Já não era sem tempo. Em 1952, eventos como o I Congresso Nacional de Cinema Brasileiro abriram espaço para o pensamento analítico sobre o que os filmes brasileiros deveriam estar abordando na época. De ocasiões como aquela surgiu o ímpeto de diretores como Nelson Pereira dos Santos (“Rio 40 graus”, 1955), Carlos Diegues (“Cinco vezes favela”, 1962) e o próprio Glauber, que estreia na direção de longas com “Barravento” em 1962. No mesmo ano, “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte, venceu a Palma de Ouro de Melhor Filme. Apesar deste último não ser uma obra alinhada ao Cinema Novo, o reconhecimento em nível mundial preconizou a necessidade de se olhar para o cinema brasileiro com mais atenção. E com o lançamento do segundo longa de Glauber, ficou difícil não fazer isso!

O filme possui uma roupagem local para abordar questões que remetem diretamente a realidade latino-americana, mas que reverberam de maneira universal enquanto drama humano. O sertanejo Manoel (Geraldo Del Rey) e sua esposa Rosa (Yoná Magalhães), sofrem com a seca e com a exploração de seu trabalho, o que o leva a assassinar o Coronel Moraes (Mílton Roda). O casal foge e se integra a um grupo que muito lembra a comunidade religiosa de Canudos, encabeçado pelo líder religioso Sebastião (Lídio Silva). Quando Rosa mata o beato, o casal novamente segue em fuga e entra para o grupo do cangaceiro Corisco (Othon Bastos), sempre perseguidos por Antonio das Mortes (Maurício do Valle), assassino contratado pelos latifundiários da região.

“Deus e o diabo na terra do sol” traduz muito do que foi o Cinema Novo, movimento cinematográfico do qual o filme é o representante mais famoso. A aceitação das dificuldades técnicas como elemento estético, o uso da alegoria na abordagem dos temas, o posicionamento político e ideológico específico e o posicionamento analítico do filme e acerca do filme estão presentes na obra e mantêm seu fascínio tanto para o espectador “iniciante”, impelido pela curiosidade que o título gera, como para os estudiosos do cinema. Além disso, o casamento da negação do glamour emprestada da representação neorrealista e a montagem desafiadora da Nouvelle Vague foi extremamente bem sucedido, pois gerou um produto que remete a estes sem necessariamente copia-los.

Com o Cinema Novo se diluindo a partir da repressão cada vez maior que os filmes do movimento sofreram justamente entre 1964-1968, “Deus e o diabo…” desponta também como um dos últimos respiros de rebeldia do movimento. Especificamente para Glauber, o filme é o ponto alto de sua “estética da fome”, na qual a denúncia da miséria enquanto tragédia humana e o comprometimento com a realidade por trás da alegoria eram o mote da obra. Depois dela, surge a “estética do sonho” nos anos 1970, para a qual “o misticismo é a única linguagem que transcende ao esquema irracional da opressão”, segundo suas próprias palavras, e que marca um momento bastante diferente de sua carreira.

Acima de tudo, “Deus e o diabo…” é um filme que resiste ao tempo. Ainda que em termos de atuação ele já aparente um pouco a “idade” que tem, sua trama continua capaz de envolver o espectador que pouco se importa com o peso da obra e que busca um filme que signifique mais do que 110 minutos de passatempo. A narrativa apresenta o campo como tema, o que torna possível relaciona-la com o western norte-americano, ao passo que a pegada do regionalismo se firma com personagens emblemáticos como o sertanejo, o santo e o cangaceiro.

A trama do filme é construída de maneira sensível e curiosa ao integrar-se a música, que ajuda o espectador a compreender diversos momentos e a aumentar a carga emocional destes. Sobre o uso da música, vale ressaltar mais uma vez o paralelo com a Nouvelle Vague, que contou com filmes que a valorizaram de maneira bem explícita para a narrativa, ao mesmo tempo em que ela remete à cultura oral do nordeste brasileiro em seu ritmo e no vocabulário das letras.

Há de se destacar também a criatividade de Glauber ao driblar as dificuldades técnicas da realização de “Deus e o diabo…”. A tal estética da fome surge na tela sem ser apenas um artifício de exploração das dificuldades enfrentadas pelos personagens, e nem faz o espectador desculpar sem mais nem menos o que, num outro filme, poderia ser apontado como erro técnico grosseiro, tal como o contraste desequilibrado entre o céu branquíssimo do sertão e o solo agreste. É perceptível como o que se vê no filme parece fruto de tudo, menos do acaso, e é por manter o fôlego dessa ideia por tantos anos e inspirar várias gerações de cineastas com sua “câmera na mão e ideia na cabeça” que “Deus e o diabo na terra do sol” entra para o hall de Clássicos com C maiúsculo e sem direito de estar separado do resto da filmografia mais marcante da história do cinema.

NOTA: 9,0