Há exatos dez anos, 22 de janeiro de 2008, eu estava assistindo alguma coisa na TV no fim da tarde – não me recordo o quê – quando meu irmão entrou na sala e me disse que Heath Ledger havia morrido. Ele viu num site, e eu corri para a internet para ver por mim mesmo. Logo a história estava em todos os sites e também nos telejornais.

Desnecessário dizer que foi um choque. Se você acompanhava o cinema na época, provavelmente já tinha visto o australiano Ledger alguma vez, pois ele atuou em projetos bem sucedidos. A primeira vez que o vi foi em O Patriota (2000) – desculpem-me, fãs, até hoje não assisti a 10 Coisas que Odeio em Você (1999), tá na lista. Enfim… Eu não gosto de O Patriota, onde Ledger faz o filho do protagonista vivido por Mel Gibson, e ele também não me causou grande impressão lá. Depois o vi em Coração de Cavaleiro (2001), achei o filme um barato e o ator também. Ali foi a primeira vez em que prestei atenção nele, fazendo um cara malandro e carismático e comandando o filme.

Era um personagem – e filme – totalmente diferente do que veríamos em O Segredo de Brokeback Mountain (2005). Antes, Heath Ledger parecia apenas mais um cara de boa aparência que faria sucesso em Hollywood com filmes leves. Depois do filme de Ang Lee, ficou claro que Ledger era realmente um grande ator.

Seu Ennis Del Mar é um dos trabalhos de atuação mais inspirados que vimos nas últimas décadas do cinema americano: tudo é bem pensado ali, consciente e ao mesmo tempo absolutamente natural. Sua linguagem corporal, o rosto que quase não se move, a boca que nem se abre direito para falar, tudo contribui para termos a ilusão de estar vendo alguém que parece real. Ora, Ennis foi real. A sensação ao final do filme era de o termos conhecido, e sofrido com ele.

No meio tempo, Ledger esteve bem em papéis menores, como em A Última Ceia (2001) – ele se torna marcante mesmo aparecendo pouco – ou mesmo como co-protagonista ou dono do filme, como em Os Irmãos Grimm (2005) e Ned Kelly (2003) – ambos medianos, mas o ator está bem nos dois filmes, em performances bastante opostas.

Quando Ledger morreu – mais tarde determinaram a causa da morte como overdose acidental de medicamentos – ele havia recém-completado seu trabalho como o Coringa de Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), e já estava gravando seu próximo filme, a fantasia O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus (2009), que o reuniria ao diretor de Irmãos Grimm, o malucão Terry Gilliam. A imprensa imediatamente quis criar paralelos entre o personagem do Coringa, sombrio e perturbado, com o estado mental do ator na época da sua morte. Uma bobagem, em minha opinião: claro que o Coringa é o tipo de personagem que mexe com o ator – o próprio Jack Nicholson, que o viveu no Batman (1989) de Tim Burton, falou algo parecido na época. Mas se Ledger tivesse falecido depois de rodar uma comédia romântica, a imprensa não teria feito tanto estardalhaço.

O fato é que a morte do intérprete do Coringa deu ao filme uma aura ainda mais sombria do que ele já possuía, e o público quis conferir. Obviamente, a morte de Ledger contribuiu para que O Cavaleiro das Trevas ultrapassasse a marca de um bilhão de dólares nas bilheterias mundiais. No entanto, suspeito que o grande público não estava inteiramente preparado para a atuação de Ledger. Brokeback Mountain foi um sucesso, assim como alguns dos filmes anteriores da carreira dele; mas um filme do Batman com certeza atrai muito mais público do que todos os projetos com os quais o ator tinha se envolvido até então. Não é exagero dizer que muita gente viu Ledger pela primeira – e última vez – como Coringa.

Esse foi um dos motivos pelos quais a atuação dele foi recebida como uma explosão atômica. Quem o viu em Brokeback Mountain já sabia do talento dele – de minha parte, eu já imaginava que O Cavaleiro das Trevas viria a ser espetacular quando vi a primeira foto divulgada do ator caracterizado como Coringa, aquele close incômodo no rosto dele, rodeado de escuridão, ressaltando as suas cicatrizes. Já tinha gostado muito de Batman Begins (2005) e tinha total confiança na visão de Christopher Nolan para o mundo do super-herói. Mas tenho consciência de que uma grande porção do público sentiu o choque da eletrizante atuação dele de forma até mais intensa do que eu, alguém que já assistia a muitos filmes e conhecia o trabalho do ator.

Por isso é triste imaginar o que teria acontecido se Heath Ledger não tivesse falecido de forma tão sem sentido, aos 29 anos. Vamos imaginar, por um momento. A atuação dele como Coringa venceu todos os principais prêmios de Ator Coadjuvante naquele ano. Teria Ledger vencido o Oscar, por exemplo, se não tivesse morrido, dada a histórica resistência da Academia com filmes de gênero, ainda mais baseados em histórias em quadrinhos? Particularmente, eu não tenho certeza de que ele ganharia.

Mesmo assim, sua atuação o teria catapultado para a elite de Hollywood. Ledger teria virado um daqueles atores capazes de escolher qualquer projeto, e garantir a sua realização, apenas ao atrelar seu nome a ele. Estaríamos vendo até hoje outros grandes trabalhos desse talento que nos deixou muito cedo. Até o terceiro Batman de Nolan seria outro – gosto do filme que Nolan acabou fazendo para encerrar a sua trilogia, mas não há dúvidas que ele seria bastante diferente caso Ledger tivesse tido a chance de repetir a sua icônica interpretação do Coringa, o vilão pelo qual todos os outros vilões são comparados em Hollywood há dez anos.

E, acima de tudo, Matilda, a filha dele com a atriz Michelle Williams, teria um pai hoje.

Ao invés disso, podemos apenas relembrá-lo, e as suas brilhantes atuações menos badaladas, como em Candy (2006); em Não Estou Lá (2007) com a sua interessante variação da persona de Bob Dylan; ou em Os Reis de Dogtown (2005). São poucos filmes com Heath Ledger, apenas 19, mas todos parecem um pouco mais especiais hoje, por tê-lo. Em 2009, Terry Gilliam conseguiu completar Doutor Parnassus graças a um espelho mágico dentro da trama do filme, e à ajuda e participações dos amigos de Ledger, Johnny Depp, Colin Farrell e Jude Law, fazendo dele de fato o derradeiro filme do ator.

Pena que, no mundo real, não existam espelhos mágicos.

Ou existem?

As telas de cinema, pelo menos, nos permitem rever a pessoa que se foi, mesmo que ela sempre venha com um rosto um pouco diferente, como no filme de Gilliam.

Afinal, ninguém podia suspeitar que aquele rapaz, astro de filmes leves lá no fim dos anos 1990, iria se revelar um homem de várias faces. 19, para ser exato.

Então, vamos celebrar hoje com algum destes 19 filmes, 19 variações do rosto que deixou uma marca breve, mas duradoura, na história do cinema.