“A 13ª emenda”, o novo documentário de Ava DuVernay, temos um exemplo bastante claro do que seriam as “asserções sobre o mundo” que o teórico Bill Nichols, um dos autores mais básicos que abordam o filme de não-ficção, se refere quando trata desse gênero cinematográfico. A diretora parte de um ponto de vista bem específico sobre o fenômeno que quer expor ao público, a encarceração em massa de afro-americanos no final do século XX e início do século XXI. A asserção básica aqui é que o boom no número de pessoas presas (e que, dado o contexto social, atinge diretamente a população negra) gera uma nova reconfiguração do trabalho escravo na América.

É a partir dessa proposta que DuVernay constrói seu filme. Apesar do tema em voga na atualidade, com movimentos como o Black Lives Matter sendo um dos direcionadores das pautas político-sociais nos EUA, ela foge do choque fácil que os documentários de Michael Moore, por exemplo, causam no espectador. O estilo mais sóbrio casa com o estilo expositivo, porém de boa fluidez, que vem caracterizando os filmes de não-ficção produzidos pela Netflix. Com isso, “A 13ª. emenda” acerta ao construir sua asserção básica em cima do trabalho de pesquisa para contextualizar o fenômeno, fortalecendo sua estratégia de tratamento do tema ao trazer também entrevistados de peso como os intelectuais Angela Davis e Henry Louis Gates.

Por que as coisas são como são?

Com um estilo didático, DuVernay explora as raízes do encarceramento de negros nos EUA, retornando aos tempos da escravidão e a relação desta com o sucesso de um modelo econômico 100% dependente de uma forma degradante de trabalho. O fim da escravidão no país, demarcado pela 13ª emenda que dá nome ao filme, seria, a partir de então, a maneira de garantir que tal “regime trabalhista” continuasse indiretamente presente, uma vez que os negros recém libertos não foram rapidamente assimilados como força de trabalho regular, sendo deixados em situação de risco, expostos à fome e mais propensos ao engajamento em atividades criminosas.

Como a 13ª emenda prevê o trabalho da comunidade carcerária, um número significativo de negros foi, basicamente, da senzala à cadeira, num quadro que lembra um pouco do que aconteceu também no Brasil, embora dentro de suas próprias especificidades. DuVernay liga a brecha da emenda ao fortalecimento do racismo contra negros nos EUA, que, por sua vez, abriu espaço um novo conceito de escravidão. Nesse aspecto, a diretora é extremamente bem sucedida em explicar e justificar sua asserção, expondo uma cuidadosa pesquisa documental, que, inclusive, perpassa o universo do cinema ao apontar como o filme “O nascimento de uma nação”, de D. W. Griffith, contribuiu para a consolidação do preconceito contra negros num mundo pré-televisão e internet, em que o poder das imagens em escala massiva estava sendo ainda descoberto.

As entrevistas com historiadores, filósofos e ativistas, embora sejam apresentadas no formato mais tradicional possível, é editada de forma que as talking heads mantenham a atenção do espectador. A escolha por criar uma espécie de bloco entre os subtópicos que ordenam o tema também ajudam a “geração Netflix” a manter o foco, sempre entrecortada por canções de hip-hop com letras extremamente críticas, sendo esse talvez o único recurso criativo que sai um pouco do que seria a zona de conforto do documentário puramente expositivo, o que não deixa de ser uma pequena decepção, dado o potencial que a diretora já demonstrou ao longo de sua filmografia. A relevância e atualidade do tema, porém, contribuem para que esse seja um pecado menor da diretora.

Um quadro completo?

Se, por um lado, a força de “A 13ª emenda” está no cuidadoso trabalho de contextualização histórica do racismo, quando o tema desemboca na configuração do atual do encarceramento nos EUA, DuVernay fica perto de perder a medida. Em busca de defender sua asserção, a diretora não aprofunda num ponto de grande impacto para o aumento no número de presos no país: a transformação do tráfico de drogas numa atividade altamente lucrativa, com a produção de drogas em escala industrial e sua posterior distribuição em nível global, em especial, a partir dos anos 1980, com a popularidade da cocaína sendo o carro-chefe desse fenômeno.

Esse é um tópico apenas pincelado por DuVernay, que prefere focar em como os governos de matiz mais conservador trataram a questão das drogas como um problema de polícia, e não de saúde, utilizando isso como desculpa para transformar o encarceramento em um lucrativo negócio ligado à empresas privadas, que passaram a administrar cada detalhe do cotidiano das prisões. Em contrapartida, a força de trabalho dos presos foi (e é) utilizada pelas mais variadas empresas ao redor do mundo, da Microsoft à Victoria’s Secret, sem uma obrigatória observância às condições de trabalho, o que, na opinião da diretora e de seus entrevistados, nada mais é que uma escravidão 2.0.

“A 13ª emenda” se enfraquece apenas quando não consegue manter o mesmo nível de defesa de seu ponto de vista quando minimiza o papel das drogas na construção de um novo cenário de encarceramento. DuVernay propõe, por exemplo, que o combate à cocaína tenha sido menor que o combate ao crack (uma droga semi-sintética de mesma origem, porém, com menor grau de pureza) apenas por uma questão racial, já que os altos preços da primeira a tornaram uma “droga do luxo”, consumida por uma população branca e de classe A, ao passo que a última era a alternativa de consumo a uma população de renda mais baixa, como latinos e negros, já que o preço do crack é bem mais baixo.

Seja na série de ficção “Narcos” ou no documentário “Cartel Land” (ambos da Netflix), pode-se ver um retrato mais completo do tráfico enquanto indústria: o fator econômico é comumente colocado acima de questões de raça, e o comércio e vício impulsionam as prisões tanto quanto a linha dura dos governos ao decidir punir consumidores, e não apenas traficantes. No documentário de DuVernay, porém, essa transversalidade não é explorada com a mesma profundidade que outros tópicos igualmente importantes para abordar o tema.

Ainda que com esse deslize, “A 13ª emenda” entra no hall de produções bem-sucedidas da Netflix. Não bastasse isso, ele dá continuidade à interessante filmografia de uma diretora engajada em contar histórias e compreender as vivências de suas próprias origens. Fortalece-se, assim, o poder de fogo da empresa de video on demand e, de quebra, contribuiu-se para a popularização de conteúdos produzidos por e focados em minorias, garantindo assim um matiz mais multicultural (e realista) dentre as opções de consumo audiovisual para o espectador.