No Festival de Cannes desse ano, o chinês Hou Hsiao-Hsien ganhou o prêmio de Melhor Diretor com esse “Nie Yinniang”, ou “A Assassina“, em tradução do título em inglês. O enigmático longa-metragem tornou-se querido pelos críticos, encantados com a incursão de Hsiao-Hsien pelo universo já muito bem explorado pelo sucesso “O tigre e o dragão” (2001), de Ang Lee: a mescla de Wuxia com cinema de arte. Há quem diga que toda a unanimidade é burra, mas é difícil argumentar contra a ovação que o filme recebeu.

A primeira marca do diretor foi manter sua pegada autoral no filme de gênero tradicionalmente bem demarcado, encarando o desafio de partir de uma narrativa relativamente comum nos filmes de artes marciais de época: a saga de um anti-herói que passa por uma provação, advinda de um conto de algumas centenas de anos. No caso de “A Assassina”, temos a figura da atriz Shu Qi como a personagem-título, que falha em uma de suas missões de dar cabo da vida de oficiais corruptos na China do século IX. Após o erro, sua prova de fogo é assassinar Tian Ji’an (Chang Chen), governador de uma província. A tarefa se complica pelo fato de eles serem primos e já terem sido noivos, além de serem amantes.

Sem tigres, nem dragões

Hsiao-Hsien não investe no formato adotado por seu conterrâneo Ang Lee, dedicando ao seu filme um olhar próprio que pode frustrar espectadores não familiarizados com a filmografia do diretor. Ao invés de intensos confrontos que fazem os personagens voarem pelos ares, “A Assassina” aposta nos aspectos melancólicos de sua trama, repleta de sutilezas e não ditos.

No plano visual, o jogo entre o preto-e-branco e a cor, ambos intensos, também indica as rupturas propostas pelo diretor para a abordagem e criação de atmosfera no longa. Já as lutas são bem mais breves e, digamos assim, mais realistas, se levarmos em consideração aquilo a que fãs do gênero estão acostumados a ver: movimentos coreografados que desafiam não raro as leis da física e a gravidade em geral, entrecortados por uma edição apoteótica em cenas que duram bastante na tela. Em “A Assassina”, o tom do filme é levar o espectador sem pressa até o momento em que os confrontos acontecem, mas estes não possuem longa duração.

O envolvimento do espectador será tão mais bem sucedido se ele comprar a proposta de Hsiao-Hsien de mostrar algo diferente tanto para aqueles que curtem os exemplares mais populares de Wuxia quanto para os que esperam um filme de arte nos moldes anteriormente explorados como o já citado “O Tigre e o Dragão”. A proposta estética de “A Assassina” traz a beleza do figurino, da direção de arte, da fotografia e a leveza sobre-humana que aprendemos a adorar na luta-dança do Wuxia, mas o uso da linguagem cinematográfica em seus aspectos mais formais e sóbrios acaba ganhando destaque maior, aproximando “A Assassina” muito mais de um “Barry Lyndon” (1975) de Stanley Kubrick que de um “Herói” (2002) de Zhang Yimou, assim como em relação ao tratamento do tema.

Curiosa aqui a relação com a obsessão de Kubrick ao recriar os espaços-palco de seus filmes, preocupação essa notável em “A Assassina”. Hsiao-Hsien não sucumbe à tentação de dar todo o aspect ratio que o cinema lhe proporcionaria para seu filme, optando por um formato próximo da janela clássica, quase quadrado. A mise-en-scène ganha então uma ordenação peculiar a partir dessa escolha, que de certa maneira comprime os infindáveis detalhes da recriação dos cenários da China do século VII, repletos de tecidos finos, padronagens no piso ou janelas, esculturas e formas arquitetônicas típicas. Mais que a compressão dessas diferentes camadas de elementos de cena, a sensação de enredamento vivida pela personagem principal ganha a cena a partir da proposta visual.

Mulheres implacáveis, mulheres misericordiosas

Em “A Assassina”, duas mulheres representam pólos opostos de um fardo que, no final das contas, atormenta a todos os personagens. Por um lado, Yinniang é colocada a prova enquanto ser criado de maneira quase alienante para não fazer nada além de matar. Sua recusa à missão rebate no sentimento de impotência diante do antigo prometido, agora envolvido em outra relação e temendo por sua própria vida por conta de Yinniang. Não por acaso, o reencontro entre os dois é também confronto, uma luta breve na qual a edição parece forçar um anticlímax, como se dissesse no corte que a protagonista não quer lutar, mas sim se desfazer de seu fardo. A atuação de Shu Qi é digna de nota nesse sentido. Comedida, sutil e melancólica, dá conta de expressar a invisibilidade mortal de uma personagem que, internamente, está em ebulição.

Do outro lado, está a superiora de Yinniang, a mulher que cuidou da moça desde jovem e que a treinou secretamente para o ofício da morte, a freira-princesa (Fang-yi Sheu). Ela decide o que a jovem não pode decidir, definindo suas ações e seu ser no mundo. Seu posicionamento altivo e rígido é o contraponto da faceta misericordiosa de Yinniang, e a freira-princesa não mostra grandes momentos de reflexão conta a decisão de quais missões dar a sua pupila, apesar de ela mesma cumprir ordens. Nessa relação, servidão e liberdade entram em quadro.

Curioso também perceber que num universo dominado pelos homens, são as mulheres que tem em mãos as escolhas de vida e morte, esperança e desprendimento. Tian Ji’an e seus serviçais buscam de todas as formas proteção contra a chegada de Yinniang e não são nunca o centro das ações. Sem entrar em detalhes, mas até mesmo o elemento sobrenatural que surge em dado momento do filme segue essa asserção.

Ainda que ações contem menos que sentimentos no Wuxia de Hou Hsiao-Hsien, em alguns momentos é gritante o nível de deformações que a estética proposta pelo diretor gera, em especial em alguns momentos em que a interpretação dos atores surge beirando o teatral, posada demais para o que o cinema já tem nos acostumado. São momentos breves, em que o espectador deve se lembrar que comprou a oferta do diretor ao decidir assistir a esse filme. No fim das contas, o balanço de “A Assassina” é positivo ao trazer mais que a mera reconstrução de um gênero.