Há filmes que tem como principal característica a inconclusibilidade. A tensão criada no desenrolar do enredo se mostra o ponto principal, mais que a corrida pela apresentação criativa do clímax ou a resolução dos conflitos. Do cinema de Wong Kar-Wai a Michael Haneke, vemos bons exemplos de como essa estratégia pode dar certo.

A Cordilheira (La cordillera, 2017) tenta embarcar nessa mesma proposta e fica pelo caminho. O principal motivo parece ser que, ao contrário dos filmes dos diretores citados acima, a direção de Santiago Mitre carece de uma noção de cinema autoral que potencializaria o uso mais ousado dos elementos que teve em mãos com o longa. O roteiro de Mitre e seu parceiro em Paulina (2015), Mariano Llinás, balança entre o thriller político e um drama psicológico/familiar que não apenas não conseguem dialogar muito bem como acabam atrapalhando um ao outro.

DOIS EM UM

Focando no primeiro, temos a história do presidente argentino Hernán Blanco (Ricardo Darín), tido como um homem simplório cuja capacidade no cargo é subestimada. Para lidar com uma possível crise causada por declarações do ex-genro e tentar desfazer essa imagem passiva demais, a atuação dele numa reunião com outros líderes latino-americanos nas cordilheiras chilenas é crucial.

Talvez o atual momento político brasileiro acabe por influenciar demais na análise – afinal, um crítico não está, e nem deveria estar, inume ao mundo fora das telas –, mas perante a realidade, os jogos de poder e a luta de egos de A Cordilheira soam quase pueris. Nem mesmo a aparição de Christian Slater como uma espécie de deus ex machina ao contrário, chegando para apimentar mais o caráter dúbio das figuras políticas e causar mais turbulência, consegue engrenar a história.

O roteiro de Mitre e Llinás carece de mais malemolência para retratar as tramoias que delineia, e o tom sóbrio da direção do primeiro torna óbvio esse descompasso. Mitre é por demais classudo para pontuar o que A Cordilheira tenta incutir como crítica. Em termos de tom de história, Jackie (idem, Pablo Larraín, 2016) é outro exemplo válido de como o minimalismo pode gerar uma perturbação positiva a um filme.

A Cordilheira esbarra no perfil introspectivo de seu protagonista. Darín, para variar, dá conta do recado, impedindo que a escolha de direção transforme Blanco, de fato, em um personagem tão sem profundidade quanto alguns de seus pares parecem julgá-lo – e que metáfora pobre colocar justo esse nome num personagem que passa a primeira meia hora de filme sendo chamado basicamente de “Zé ninguém”. Infelizmente, as pontas soltas deixadas pelo filme atrapalham o que poderia ser um papel de maior destaque na filmografia do ator.

Darín faz um trabalho responsável com o que tem em mãos, mas esbarra com flat characters como os presidentes do México e Brasil (Daniel Giménez Cacho e Leonardo Franco, respectivamente) na trama e acaba tornando gritantes os momentos em que o longa peca criativamente e brilha tecnicamente. A subutilização de Paulina García como a presidenta chilena Paula Scherson também dói, ainda mais quando nos lembramos dela em Gloria (idem, Sebastián Lelio, 2013)

Contribui com isso o fato de que eles dividem a tela com o segundo foco do roteiro, que é o drama de Blanco e sua filha, a trágica Marina (Dolores Fonzi). Separada do marido, ela tem uma saúde mental frágil e comportamento tempestuoso, como vemos quando ela decide quebrar uma janela e arremessar uma cadeira do alto de seu quarto de hotel no Chile.

Esse subplot, que bem poderia ser o principal, consegue inclusive ser mais criativo em termos de imagem: as sobreposições, fades, uso das cores e montagem criativa embaralham a todo momento passado e presente, realidade e sonho, numa imersão tensa e vibrante ao espectador. Visualmente, a influência da fase silenciosa de Hitchcock ou do cinema experimental de Germaine Dulac é clara, ao passo que a trama de Marina tem ecos de Rebecca, a mulher inesquecível (Rebecca, Alfred Hitchcock, 1940). Fonzi consegue roubar a cena às vezes, até mesmo pelas entrelinhas mais bem entregues de sua personagem, tornando Marina uma coadjuvante magnética.

NO ESQUECIMENTO

O balanço geral de A Cordilheira o coloca no hall dos filmes que vemos e que tem uma proposta e visual interessantes, mas cujo resultado final ameaça cair no esquecimento da memória cinéfila em médio ou longo prazo. Dito isto, a experiência imediata de assistir ao longa não é de todo ruim, destacando-se como ponto alto a fotografia belíssima de Javier Julia, cujo trabalho lembramos também em Relatos Selvagens (Relatos Selvajes, Damián Szifron, 2014).

Ainda que a paleta de cores seja um tanto tradicional – os cinzas e os azuis dominam a tela –, Julia pincela com cuidado pontuais tons de marrom e laranja, fazendo com que os momentos em que a imagem “se aquece” fujam do cliché de uso das cores. Os planos mais inventivos no momento em que a história aproxima Blanco e Marina também conseguem dar conta de frisar o dinamismo da fotografia, ao passo que uma maior rigidez se faz presente quando o personagem de Darín precisa se blindar do mundo. A beleza e imponência das montanhas também são colocadas de forma a servir positivamente à construção das metáforas que nem sempre o roteiro do filme dá conta de apresentar satisfatoriamente.

Frente a tudo isso, A Cordilheira figura como um filme que gera mais curiosidade no sentido de ficarmos atentos ao que Santiago Mitre pode nos entregar num projeto futuro. O longa, que chegou a ser exibido no Un certain regard em Cannes no ano passado, possui excelente equipe técnica e elenco irrepreensível, sendo um exercício válido de estilo, ainda que careça de um coração mais pulsante.