Uma das ideias básicas de todo romance cinematográfico que se preze, a de que um ser pode ser único e especial no mundo para outro, é de fato bem bonita na teoria e na qual tentamos acreditar, talvez na esperança de que ela valha deste lado do celuloide também. “A Forma da Água”, novo filme de Guillermo del Toro, propõe, em cima dessa ideia, uma fantasia: e esse ser especial fosse uma espécie de anfíbio antropomorfo?

À primeira vista, o filme, premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza e exibido no Festival de Londres, parece um amálgama de referências conhecidas de seu realizador. Uma protagonista cheia de trejeitos? Confere. Um monstro que instiga a ação? Confere. Acontecimentos fantásticos com um pano de fundo realista? Confere. Porém, é com essa familiaridade estrutural que o cineasta consegue entregar seu filme mais completo em anos.

“Fábula” é um conceito tão enraizado na obra de del Toro quanto “melodrama” é na de Almodóvar, por exemplo, e o mexicano faz pleno uso dele para nos contar a história de Eliza (Sally Hawkins, excelente), uma faxineira muda e solitária que trabalha numa unidade de pesquisa militar americana na década de 1950. Ao se deparar com uma criatura aquática (Doug Jones) mantida em um dos laboratórios da unidade, cuja aparência remete diretamente ao clássico “A Criatura da Lagoa Negra”, ela começa uma série de interações que levam a um romance entre os dois.

Del Toro está muito preocupado em saber o que nos faz humanos, algo tornado explícito nos contrastes entre os sentimentos crus e puros do anfíbio e a frieza de autoridades como o coronel Richard Strickland (Michael Shannon), que, movido pela ambição e por um senso de moralidade bíblica, abusa de métodos sádicos para subjugar o ser capturado.

A trama, relativamente simples, se apresenta como uma versão sem censura dos contos Disney, protagonizada não por nobres, mas pelos excluídos da sociedade, e recheada com violência e, especialmente, sexo. Em menos de cinco minutos de projeção, descobrimos que o ritual matinal da protagonista inclui uma rápida masturbação. O comportamento do vilão também tem lá seus contextos sexuais. Uma vez juntos, Eliza e monstro vivem um romance nada de pudico que se concretiza carnalmente. Ao confidenciar isso à sua fiel amiga e escudeira Zelda (a sempre ótima Octavia Spencer) ela responde com a dúvida que habita este lado da tela: “Como!?”.

A explicação é dada, mas ela não é importante. Não há nenhum tipo de maior análise sobre o que é a criatura, de onde ela veio e muito menos como o organismo dela funciona. Como em qualquer fábula, ela praticamente existe em função da história e nós a acompanhamos porque queremos crer. Queremos crer que o mundo é mais do que um lugar que julga e segrega os diferentes, onde racismo e homofobia existem, onde pessoas e seres são explorados ou mortos por conta de ideologias. “A Forma da Água” é um conto fantástico para todos aqueles que têm em si o poder de acreditar.