Dentre os diretores brasileiros, um (ou melhor, uma) merecia maior destaque com o público por conta de sua sensibilidade ímpar. Trata-se de Suzana Amaral, que, no meio dos anos 1980, encarou um desafio que não muitos teriam coragem de levar adiante: adaptar para o cinema um livro da escritora Clarice Lispector. O resultado é “A hora da estrela” (1985), seu bem sucedido début na direção.

De certa forma, Suzana imprimiu no filme algo de suas próprias contradições. À época do lançamento, ela já tinha 53 anos e era mãe de nove filhos. No campo profissional, dirigira documentários e curtas-metragens. Essa bagagem lhe preencheu o currículo, mas também trouxe vivências e apurou sua sensibilidade, de maneira que o retrato que ela cria da ingênua jovem Macabéa (Marcelia Cartaxo) num mundo bruto demais em “A hora da estrela” soa sincero e tocante.

Na trama, a jovem órfã do interior Macabéa se muda para a cidade grande e passa a trabalhar como datilógrafa. Sua vida é simples e ela é indiferente à agitação e pretensões que a modernidade incute nas pessoas e suas rotinas; seu desejo, no máximo, é encontrar um “príncipe encantado” que a ame e afaste o fantasma da pobreza de onde veio.  Ela acaba se envolvendo com um rapaz também do interior, Olímpico de Jesus (José Dumont), mas ele possui ambições maiores e, ao contrário dela, ingenuidade não é o seu forte, o que culmina em uma virada nada feliz para Macabéa.

São as situações vividas por ela, arrastada passivamente pelas circunstâncias, o mote de uma série de reflexões sociais e existenciais. A pobreza, o sonho de uma vida melhor e a tênue linha que separa a esperança da ambição correm pelo filme através de Macabéa e dos que a cercam. Embora o humor surja em vários momentos, principalmente nos passeios da jovem com o namorado Olímpico, as entrelinhas carregam muito a se pensar e questionar, mostrando que Amaral também teve sucesso como roteirista do filme ao “enxugar” o livro sem que ele perdesse sua essência.

Macabéa, plana e boba, descreve-se como uma virgem que gosta de Coca-Cola e parece alienada de tudo que a cerca; no entanto, ao surgirem elementos como a falta de caráter de sua “amiga” Glória (Tamara Taxman) ou o desprezo de Olímpico ao sequer lembrar direito do nome de Macabéa, cria-se no espectador o questionamento se seria tão bom assim fazer parte desse universo de altas pretensões. Nesse sentido, Amaral consegue ir de encontro com o texto base da adaptação, ainda que de maneira um tanto diversa em alguns momentos, como através da esteriotipação de Glória ou nas nuances mais acentuadas de crítica social presentes no filme.

A personalidade peculiar de Macabéa é muito bem representada por Amaral, amparada pelo talento da atriz Marcelia Cartaxo, que estreou nesse filme. O que poderia ser uma armadilha ao se adaptar o texto de Lispector resultou no grande trunfo do filme, como bem provou o Urso de Prata que Cartaxo ganhou no Festival de Berlim como Melhor Atriz em 1986 e o prêmio de Melhor Atriz em 1985 no Festival de Brasília. Aliás, naquele ano, “A hora da estrela” levou todos os prêmios principais desse festival.

A discrepância física e psicológica de Macabéa em relação às outras mulheres expressa-se em elementos que Amaral parece dominar com segurança. O figurino mais antiquado e simples da nordestina, a voz que denuncia sua origem e suas inseguranças e a falta de higiene do quarto de moças contrastando com as belas imagens de revistas que Macabéa gruda na parede são detalhes que complementam ironicamente o modo nada educado com que todos tratam a personagem. A cidade que a cerca, por sua vez, é carregada por tons de azul e cinza, sempre frios, nunca a acolhendo.

Assim como no livro, um outro elemento, dessa vez nada sutil, surge para transformar os rumos de Macabéa: a figura de uma cartomante, Madame Carlota. Amaral expressa tal deus ex machina em toda a sua estranheza, numa ambientação exótica e com uma Fernanda Montenegro de figurino e falas exagerados. Consultada por Glória e depois por Macabéa, a cartomante sela o rumo da trama, embora suas previsões não sejam o que parecem. Depois do encontro dela com a protagonista, o tom naturalista do filme dá lugar a uma edição mais arrojada, de amargo tom poético, culminando em um final mais belo e triste, montado de maneira bastante criativa.

“A hora da estrela” permanece como o mais conhecido e um dos mais queridos filmes de Suzana Amaral. Trata-se de uma obra que fez jus ao livro do qual deriva e que envelheceu bem, permanecendo referência na história do cinema brasileiro dado o seu cuidado técnico e sensibilidade. É um filme que vale a pena revisitar e que mostra todo o talento de uma das poucas figuras femininas de maior renome no cinema nacional.

NOTA:8,5