Eis aqui uma película curiosa, em uma mistura de amor, ódio, vingança e a intensa busca pelo, até então, inalcançável.

Em nossa época, Pedro Almodóvar é o diretor que mais se identifica com o que chamam de ‘cinema de autor’. Assim como um escritor, ele possui universos, repertório de personagens e situações aos quais volta sempre – carregando o trunfo de elevar o exagero ao estado da arte e, por vezes, utilizar-se de um modelo incrivelmente folhetinesco. Quando se discorre sobre o estilo interpretativo de seus atores, ‘teatral’ é a qualificação. Ao analisar os cenários de seus filmes, alguns críticos, por mais incrível que possa parecer, podem classificá-los como ‘brega’ – outro dia, o escritor e ensaísta David Denby, da revista The New Yorker, caiu na besteira de dizer que as famosas cores que aparecem em seus filmes lembram as usadas em departamentos de lojas em liquidação (oi? eu me chamo arte, muito prazer!). A verdade, é que estamos diante de um gênio do cinema, com uma linguagem única, um dos poucos cineastas capazes de ver sua arte como convergência de outras – seja teatro, pintura ou música.

Com pouco mais de 35 anos de carreira, ele levou grandes obras ao público admirador de um cinema irreverente e original. Suas tramas, sempre focadas na imprevisibilidade dos personagens, alcançaram os limites do drama em “Fale com Ela”, ou a comédia kitsch em “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”. “A Pele que Habito” experimenta um thriller, com inspiração no romance “Tarântula” (1995), do escritor francês Thierry Jonquet (1954-2009). O filme não mostra aquela espécie de horror da qual estamos acostumados, do tipo ‘espreme-sai-sangue’ ou com psicopatas mascarados, zumbis e aliens – mas, ele está ali, em cada detalhe, disfarçado de pânico psicológico.

O personagem central, Robert Ledgard (interpretado por Antonio Bandeiras, que volta a filmar com o diretor depois de 20 anos), é um bem-sucedido cirurgião plástico. Após a trágica morte de sua esposa, que teve o corpo todo incinerado depois de um acidente, ele inicia uma delirante busca pela ‘pele perfeita’, utilizando a fria filosofia de que os fins justificam os meios. E a sua obsessão não para por aí, embora negue, nosso Dr. Frankenstein, do mundo moderno e tecnológico, começa a recriar sua mulher – e detalhe: utilizando um homem como cobaia. Burlando princípios éticos da medicina e escondendo suas fontes da comunidade científica, Ledgard mistura DNA humano com suíno e dá um passo gigantesco em suas pesquisas, obtendo uma pele com rigidez e resistência à dor – o Super-Homem que se cuide!

Ironias à parte, a história tão futurista se passa no sugestivo ano de 2012. No palacete bizarro do médico, mais precisamente em um dos seus salões, uma belíssima mulher desperta atenção e atiça nossa curiosidade: Vera, a cobaia (interpretada pela atriz Elena Anaya). Nela, ele testa a pele artificial e mantém um exercício de voyeurismo.  As respostas, como de praxe, vêm numa cena de volta ao passado – que esclarece, ao mesmo tempo, a loucura de Robert e o desconforto da ‘belezinha plástica’. O fato de que ele está tentando recriar a sua mulher por meio da ciência, é mais do que evidente. Mas, como na outra cena, a evidência é só a derme – uma primeira camada.

Utilizando um recurso de ir e voltar no tempo, o enredo se desenrola em seis anos, acompanhando as obscuras transformações de Vincent (interpretado por Jan Cornet) – a princípio, um personagem sem importância alguma e que, de repente, rouba a cena e se transforma no centro das atenções (se você ainda não viu o filme e é do tipo que odeia quando um amigo vem e revela o desfecho da história, não termine de ler este parágrafo e pule imediatamente para o próximo, pois farei uma revelação capaz de surrupiar o glamour da sua percepção narrativa, apesar de já tê-la feito nas entrelinhas). 3,2,1.. – ops, ele se transforma em Vera. Sim, depois de ser sequestrado pelo Dr. Frankenstein e ter passado por intermináveis manipulações cirúrgicas, incluindo a troca de sexo, Vincent se tornou Vera – uma espécie de clone da falecida esposa do médico.

A desordem psicológica dos personagens ganha uma conotação magistral, fazendo com que ali não tenhamos vilões nem mocinhos, mas somente pessoas presas em novos mundos, apesar dos pesares. E, a todo o momento, percebemos que o clima aflitivo é sustentado em meio às questões que sempre motivam o cineasta, como a transexualidade – se trocássemos de corpo, trocaríamos necessariamente de identidade? Ou a memória é a carne que não se corta, o lar que não se tira?

As reviravoltas da trama são tantas, que acaba sobrando pouco espaço para desenvolver o ‘mundo interior’ dos personagens – quando relembram acontecimentos, parece que estamos diante de uma novela – sabe quando o milionário revela ser pai do galã pobretão?  E, de repente, tudo começa a fazer sentido? Eis que a particularidade folhetinesca de Almodóvar entra em cena. Fora isso, o filme expõe flashbacks alucinantes, cheio de idas e vindas, com esclarecimentos que geram novas dúvidas (mas sem que o espectador se perca), numa espiral inquietante, marcada pela trilha sonora de Alberto Iglesias – que pontuou essencialmente os níveis de tensão, a ousadia e o surpreendente desfecho das cenas.

A salada de gêneros, que pode ir do filme noir ao melodrama, da comédia escrachada à ficção científica, em um mesmo filme – ou, ainda, numa única cena – é uma marca registrada de Almodóvar. Com um roteiro mirabolante, beirando o inverossímil, “A Pele que Habito” gruda nossos olhos na telona e desponta como um exagero de criatividade e talento que foge aos clichês sobre o cinema de arte. Uma obra que está pronta para ser aclamada pelos próximos anos e, claro, a minha primeira indicação ao Oscar.