A noite de 12 de junho de 1994 tinha tudo para ser tão corriqueira quanto as últimas em Brentwood, área de classe média alta de Los Angeles. Para os moradores do local e a polícia, no entanto, a data foi tudo, menos corriqueira. Naquela noite, os corpos de Nicole Brown Simpson e Ronald Goldman foram achados na casa onde ela morava com os dois filhos. Seria um crime “como qualquer outro”, não fosse o agravante: Nicole era ex-esposa de O.J Simpson e o ídolo máximo do futebol americano virou o principal suspeito do duplo homicídio.

O crime que parou os Estados Unidos foi escolhido para inaugurar a mais nova antologia de Ryan Murphy. A exemplo de “American Horror Story”, “American Crime Story” deve abordar, a cada temporada, um tema diferente (a próxima leva de episódios terá como pano de fundo o furacão Katrina, em 2005).

Baseado no livro do jornalista Jeffrey Toobin sobre o caso, “O Povo Contra O.J Simpson” tem duas frentes firmes: os personagens (e os desafios/dilemas morais que enfrentam) e o contexto midiático e social no qual o crime está inserido. Isso já é pontuado na primeira cena da antologia, quando o espectador mais desavisado é bombardeado com informações referentes aos embates entre a polícia de Los Angeles e os negros.

Isso é importantíssimo para que entendamos o que aconteceu naquele julgamento. Não é spoiler nenhum dizer que O.J foi absolvido – ainda que você seja novo demais para lembrar/saber -, mas pouca gente lembra que o ‘dream team’ de advogados do ex-atleta embarcaram em uma guerra contra a polícia conhecidamente racista.

american-crime-story_yVySAnLMarcia, Marcia, Marcia

Mas enquanto racismo tem papel importante na história, o que salta mesmo aos olhos é a forma sensível com que Murphy trata a promotora Marcia Clark. Turrona e sem vaidade, Clark é bombardeada pela mídia, que a pinta como vilã e faz do visual dela motivo de chacota. Em um desempenho primoroso e que finalmente deve lhe valer o elusivo Emmy, Sarah Paulson faz de Clark uma alma incompreendida, cujo compromisso com o trabalho e com a defesa dos direitos de mulheres agredidas como Nicole Simpson são maiores que qualquer penteado.

recaps-american-crime-storyO time dos sonhos

Falando em Emmy, se os votantes não estiverem loucos, vão encher as categorias de atuação em Minissérie ou Filme para TV com o pessoal de “American Crime Story”. Se do lado da promotoria, temos uma Paulson elétrica, na defesa de O.J Simpson temos um improvável ‘time dos sonhos’, encabeçado por um John Travolta que tem no ególatra Robert Shapiro seu melhor trabalho desde “Pulp Fiction”.

David Schwimmer deixa de vez o Ross de “Friends” de lado e faz do Robert Kardashian algo além do puxa-saco descrito no livro de Jeffrey Toobin. Schwimmer se beneficia do roteiro que coloca a família de Robert em evidência – para quem não sabe, o advogado é o falecido pai de Kim Kardashian. As referências à família mais famosa dos reality shows norte-americanos ficam cansativas, é verdade, mas servem como uma baita escada para o trabalho de Schwimmer – um exemplo disso é a irônica cena do terceiro episódio onde Kardashian explica aos filhos o preço da fama.

Contudo, quem rouba a cena mesmo é Courtney B. Vance. Relegado a papeis pequenos no cinema e a pontas em séries nos últimos anos, Vance tem seu talento posto à prova ao interpretar o advogado carismático Johnnie Cochran, apontado como a principal razão para o sucesso do time de defesa de Simpson. É o personagem mais interessante do longa, e o ator faz de toda a dubiedade que o cerca um verdadeiro playground, principalmente nas cenas dentro do tribunal. Um talento desperdiçado que ganhou, enfim, uma chance ao sol.

O elo mais fraco acaba sendo Cuba Gooding Jr., que tem aqueles ataques histriônicos que funcionaram bem apenas em “Jerry Maguire” e falha ao tentar passar a dubiedade do comportamento de Simpson perante aos advogados e à mídia. Ele é culpado ou inocente? Pela atuação de Gooding Jr., não há muito do que duvidar.

American Crime Story - The People Vs O.J SimpsonO veredito

“American Crime Story” tem 10 episódios. Pode parecer pouco para um caso que se arrastou por mais de um ano (só o julgamento durou nove meses), mas a equipe comandada por Murphy equilibra bem todos os fatos relevantes à história. Um dos melhores episódios é o segundo, que reconta a inacreditável perseguição policial a O.J, transmitida pela televisão para todo o mundo. O foco jogado no júri no oitavo capítulo também é importantíssimo para que o espectador se prepare para os momentos finais.

Os momentos em que se foge do cenário policial/jurídico e se entra na esfera midiática são os mais preciosos da série e a tornam parte da ‘videografia’ obrigatória de qualquer estudante de jornalismo. É aí que se percebe a dimensão que um caso envolvendo um dos atletas mais amados dos EUA teve em um mundo pré-redes sociais (e pré-internet, de certa forma, já que a web não era acessível a todos naquele ponto). Em um mundo que consome cada segundo da morte de um cantor sertanejo ou que assiste, ansioso, ao desfecho de um crime envolvendo uma socialite, ver as implicações que isso causa nas pessoas diretamente envolvidas com a história é paradoxal.