Os filmes de terror refletem os medos das sociedades que os produzem. E havia poucas coisas mais assustadoras para a América branca e conservadora, no final dos anos 1960 e começo dos 1970, do que ver seus filhos e filhas se tornando hippies e saindo por aí pregando a paz e o amor e experimentando drogas. Esse é o subtexto do filme Annabelle, derivado do sucesso Invocação do Mal (2013), feito para passarmos o tempo enquanto não chega o Invocação do Mal 2. É um típico projeto da Hollywood atual e sua mania por franquias, dedicado a explicar algo que não precisava ser explicado, a origem da boneca macabra vista por cinco minutos no longa de 2013.

Annabelle começa fazendo uma breve recapitulação do início de Invocação do Mal, quando víamos a boneca pela primeira vez, e depois parte para a história. Estamos em 1970 e os Estados Unidos ainda estão sob o impacto dos crimes da Família Manson – em 1969 os seguidores do maníaco Charles Manson mataram a atriz Sharon Tate, esposa do cineasta Roman Polanski, e outros convidados de uma festa num crime sangrento que chocou o país, e um noticiário de TV em Annabelle faz questão de nos situar nesse contexto histórico. De repente pessoas que nunca trancaram as portas de casa começaram a fazê-lo. Os crimes da Família Manson, junto com o show dos Rolling Stones em Altamont em 1969 no qual um membro da plateia foi morto, representaram o fim do sonho hippie. “Paz e amor” se transformaram em violência e medo.

Em meio a esse contexto conhecemos o casal protagonista do filme. Mia (Annabelle Wallis, uma atriz que deve ter sido escolhida para o papel pelo nome) e John (Ward Horton) vivem na Califórnia e estão esperando seu primeiro bebê. Ele é médico, ela dona de casa e colecionadora de bonecas. É John quem dá a Mia a boneca Annabelle de presente – ela chega dentro de uma caixa grande que remete a um caixão, e já parece assustadora mesmo antes de ser possuída. Então uma noite, algo aterrorizante acontece com os vizinhos do casal. E a filha enlouquecida destes, chamada Annabelle Higgins, que partiu para se juntar a um culto semelhante ao de Manson, acaba estabelecendo uma ligação com a boneca…

Fatos estranhos então começam a acontecer e persistem mesmo quando o casal se muda para um prédio de apartamentos. Logo começam as aparições de uma figura demoníaca e de um berço preto – ecos de O Bebê de Rosemary (1968) de Polanski. Aliás, o próprio nome da personagem Mia é uma referência à Mia Farrow, a Rosemary do filme sessentista. O objeto de desejo das aparições é o filho do casal, cuja vida passa a ser ameaçada.

O diretor John R. Leonetti e o roteirista Gary Daubermann criam um filme de atmosfera e com pouco sangue, e onde a tensão é construída aos poucos como em filmes marcantes daquela época, como o próprio Bebê de Rosemary e Terror em Amityville (1979) – como em Amityville, um padre tem papel de destaque em Annabelle. Leonetti foi diretor de fotografia em Invocação do Mal e nos dois capítulos de Sobrenatural, todos dirigidos por James Wan, que em Annabelle assume a função de produtor. Leonetti é irmão do grande diretor de fotografia Matthew F. Leonetti que, entre outros trabalhos, filmou Poltergeist: O Fenômeno (1982).

Então, de terror o diretor entende e faz muitas coisas da forma correta. A melhor cena do filme – estragada pelo trailer – é a tomada que enquadra nosso casal protagonista dormindo na cama e o quarto dos vizinhos visto pela janela. A câmera se aproxima da janela e algo terrível acontece no outro quarto, e a câmera mostra isso sem cortes. Além disso, há outros grandes momentos filmados de forma eficaz por Leonetti. Toda a sequência do elevador que se abre sempre no mesmo andar também é bem construída e o susto mais memorável do filme envolve uma aparição cruzando uma porta.

Porém, o bom trabalho de Leonetti não contorna outros problemas. Como a apatia do casal principal – Horton e Wallis são muito inexpressivos e não conquistam a simpatia do espectador. São tão bonitos e perfeitos, sem nenhuma complexidade, que realmente parecem de outro mundo. E o roteiro via ficando progressivamente mais bobo à medida que a história avança. A personagem da atriz Alfre Woodard, por exemplo, é mais um veículo para explicar a trama do que uma figura tridimensional – a dignidade da atriz até tenta fazer o papel funcionar, mas não consegue. E o sacrifício de um personagem no final serve para amarrar a trama de modo conveniente e fácil.

Annabelle fundamenta-se nas convenções do terror, então se o espectador já tiver visto um bom número de exemplares do gênero, invariavelmente o achará previsível. É um filme conservador, e isso se estende ao subtexto presente na narrativa. A história contrapõe a faceta suburbana, branca e perfeita dos Estados Unidos com a rebeldia dos jovens e as tensões presentes na sociedade da época. Afinal, todos os problemas da história não teriam acontecido se a jovem Annabelle Higgins não tivesse ido experimentar o “sexo, drogas e rock’n’roll” dos anos 1960. O longa valoriza a existência conservadora e conformista americana e, obviamente, a igreja, a religião e a família são mostrados como alicerces desse modo de vida.

Invocação do Mal se desviava dessas armadilhas razoavelmente bem, tinha um roteiro e elenco melhores e até um pouco de humor – enquanto Annabelle é completamente sério – e sua resolução era, acima de tudo, humana e não religiosa. Annabelle não chega a ser ruim ou inassistível, mas se contenta em navegar pelo caminho seguro, em repetir situações e convenções. E um filme de terror, para se tornar realmente memorável, precisa correr riscos e precisa fazer a plateia sentir que também está correndo risco. Ou seja, precisa de uma dose de “sexo, drogas e rock’n’roll”.

Nota: 4,5