Há duas décadas, começava a chamada “Retomada” do cinema brasileiro – ou o reinício da produção de filmes no país, que ia mal das pernas desde o fim da década de 1980, sendo definitivamente interrompida durante o governo de Fernando Collor de Mello. Os estudiosos da filmografia nacional apontam o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), de Carla Camurati, como o marco inicial desse processo, mas, à luz do que de melhor se fez no país nesses últimos vinte anos, não seria injusto eleger Baile Perfumado (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, como a obra que antecipa de forma mais decisiva os novos caminhos do cinema brasileiro.

Já naquele longínquo 96, a obra de Paulo e Lírio marcava uma distância abissal em relação às comédias urbanas, de inspiração televisiva, características da filmografia de RJ e SP. Seu filme apresentava uma narrativa intensa, febril, fortemente influenciada pela estética dos cordéis e do movimento mangue beat na música, para tratar do encontro entre o mascate libanês Benjamin Abrahão (Duda Mamberti) e o lendário fora-da-lei nordestino Lampião (Luiz Carlos Vasconcelos). Recuperando imagens de arquivo do cangaceiro, a produção atualizava questões temáticas e estéticas do Cinema Novo, ganhando uma repercussão importantíssima no panorama do cinema da época, e sendo um verdadeiro rastilho para a “explosão” dos filmes pernambucanos nos últimos quinze anos. O próprio Ferreira, uma década depois, lançaria, em Árido Movie (2006), uma espécie de manifesto por um cinema pernambucano-cosmopolita, na linha dos caranguejos com cérebro de Chico Science.

O curioso é que, embora o mais perto que tenhamos de um complexo de produção de filmes sejam os polos audiovisuais do Rio de Janeiro e de São Paulo – continuando, aliás, uma tradição de décadas, já que os grandes estúdios da época das chanchadas, nos anos 1950, eram localizados nesses estados –, dois “levantes” fundamentais para o amadurecimento do cinema nacional tenham tido sua origem na região nordeste: o Cinema Novo, cuja figura mais emblemática é o baiano Glauber Rocha, com suas imagens míticas de cangaceiros e santos; e o novo cinema pernambucano, tema deste artigo e atualmente considerado a grande força criativa da produção brasileira.

Para quem acompanha o cinema brasileiro, já ficou até manjado se falar em “filme pernambucano”, tal a consistência e a qualidade do que se produz no estado, mas os títulos falam por si: Amarelo Manga (2003), Baixio das Bestas (2007) e Febre do Rato (2011), de Claudio Assis; Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda (aliás, roteirista de Baile Perfumado); Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e Era uma Vez Eu, Verônica (2012) de Marcelo Gomes; Boi Neon (2016), de Gabriel Mascaro; Eles Voltam (2011), de Marcelo Lordello; A História da Eternidade (2014), de Camilo Cavalcante; Árido Movie (2006) e Sangue Azul (2015), do próprio Lírio Ferreira; e O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016) do mais novo grande nome a emergir de Recife, Kleber Mendonça Filho. Atores como Jesuíta Barbosa, Hermila Guedes e o incansável Irandhir Santos também vêm sendo reconhecidos pelo trabalho corajoso e multiforme, duas palavras que se aplicam bem à produção do estado.

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A multiplicidade de abordagens, porém – do naturalismo cru e visceral de Claudio Assis à poesia e encantamento de Camilo Cavalcante, passando pelas meditações políticas e sociais de Kleber Mendonça Filho –, faz com que o rótulo de “cinema pernambucano” pareça redutor e injusto a alguns realizadores. De fato, se é impossível determinar uma unidade de propósitos e ambições para os cineastas do estado – diferente, por exemplo, do Cinema Novo (sempre ele), com suas temáticas engajadas –, o tal “cinema pernambucano”, ainda assim, é reconhecível pela complexidade das propostas e o inconformismo nas abordagens, duas características tão em falta na produção brasileira, sobretudo a comercial, atual. Onde mais, afinal, podem se encontrar imagens tão originais e marcantes quanto a “cachoeira de sangue” de O Som ao Redor, o encontro de Zizo (Irandhir Santos) e Eneida (Nanda Costa) no barco em Febre do Rato, ou a massagem no cavalo em Boi Neon? Além, é claro, do fator mais importante: a quantidade de grandes profissionais, em todas as áreas, que vem saindo de lá.

Engana-se porém, quem acha que o vigor do cinema de Pernambuco seja um acidente feliz, uma explosão súbita e inesperada. Até historiadores da produção nacional ignoram que, na década de 1920, o estado viveu um curto, mas brilhante, período de produção de filmes, o chamado “Ciclo de Recife”, que renderia alguns nomes importantes do cinema mudo brasileiro e latino-americano, como Gentil Roiz (Retribuição) e Edson Chagas (Um Bravo do Nordeste). O Ciclo terminou tão logo o cinema falado se impôs, mas a capital pernambucana continuou sendo uma das mais prolíficas do país em matéria de cultura cinéfila, com muitas salas de cinema e um movimento vigoroso de pesquisadores e cineclubes. O período da Ditadura veria surgir ainda um movimento de criação de curtas em Super-8, que seria influente na formação de nomes como Assis, Lacerda e Ferreira.

Crítica: O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho

Mas, voltando ao presente, o que, afinal, faz de Pernambuco um centro de produção tão pujante e vigoroso? Por que o estado consegue ter um calendário regular de trabalhos com nível artístico tão à frente do que se faz no restante do Brasil? Alguns fatores fazem a diferença. Na última década, o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) possibilitou a consolidação da produção audiovisual no estado, com editais amplos em várias categorias audiovisuais. No ano passado, foram mais de 20 milhões de reais, para 112 projetos em diferentes mídias. A cultura do cineclubismo e a forte tradição de cinefilia no estado também contam. Vários dos grandes realizadores pernambucanos, como Cláudio Assis, têm formação autodidata, adquirida a partir da participação nos cineclubes e da realização de curtas por conta própria. Outros, como Mendonça Filho, eram críticos de cinema antes de passar para o “lado de lá” da Sétima Arte. Junte-se a isso o barateamento dos equipamentos e o crescimento na formação de categorias técnicas, como iluminação e montagem, e chega-se a algo próximo da pujança de Pernambuco.

Próximo. Falta só a inspiração – a confluência extraordinária de propostas originais, de visões de mundo intrigantes, de coragem e desvario que caracteriza a geração atual do cinema do mangue. Espera-se que este tenha vindo para ficar, e que aquela seja só a primeira. Os caranguejos com cérebro, com a trilha aberta por Lírio e Paulo, não mais sacodem o mundo apenas com tambores – eles também intrigam, contestam, chocam e maravilham com câmeras.