Implicar com a atual do ex-marido, olhar torto para a jovem mãe solteira ou viver em eterna competição com a colega que consegue ser mãe de família e (ao mesmo tempo) CEO de alguma empresa. Quando uma personagem feminina não é mostrada como plot device, ela costuma aparecer em competição com alguma outra mulher. Em pleno 2017, ainda há o entendimento de que mulheres não podem ser amigas e que há sempre algum tipo de intriga entre elas. Esses conceitos são subvertidos na sensível “Big Little Lies”, minissérie da HBO que abocanhou indicações nas principais categorias do Emmy.

Baseada no livro “Pequenas Grandes Mentiras”, de Liane Moriarty (que acompanhou toda a produção da série), “BLL” pode até ter a assinatura de dois homens – no caso, o diretor Jean-Marc Vallée, de “Clube de Compras Dallas”, e o produtor ‘todo-poderoso’ David E. Kelley -, mas a sua essência é feminina. As mulheres comandam toda a história e, para mudar um pouquinho o cenário, os homens é que são as escadas para as situações da minissérie.

“BLL” se passa em Monterey, cidade da Califórnia. Lá, acompanhamos as vidas e as “pequenas grandes mentiras” do cotidiano de Madeline (Reese Witherspoon), Celeste (Nicole Kidman), Jane (Shailene Wodley), e, em menor escala, Bonnie (Zoe Kravitz) e Renata (Laura Dern). Todas têm filhos das mesmas idade e o mote da série é justamente como as rotinas delas se entrelaçam por meio dessas crianças.

São vários os pontos tocados nos sete episódios de “BLL”. O que aparece, de cara, é a competição entre as mães de classe média alta. Vemos isso com Renata, CEO de uma grande empresa, e Madeline, que faz questão de frisar que seu trabalho no teatro comunitário é apenas um “passatempo” ao mesmo passo em que solta críticas à personagem que tem um “full time job”. Madeline também vive entre farpas com o ex-marido e a atual esposa dele, Bonnie. A amizade com a recém-chegada Jane e os conselhos trocados com Celeste lhe são, aparentemente, o único momento de trégua no dia da personagem.

Um dos acertos de “Big Little Lies” é a forma com que cada uma dessas personagens vai se desenvolvendo. Há, sim, certo descaso com Renata e, principalmente, Bonnie (vivida pela única atriz negra do elenco principal). A primeira tem poucos momentos realmente interessantes, como conflitos ao descobrir o bullying da filha, mas a segunda é retratada apenas como a linda e perfeita esposa e madrasta perfeita que faz “todos os homens terem uma ereção” (palavras de Madeline), sendo que, no livro, há mais coisas sobre Bonnie que seriam fundamentais ao último ato da história.

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O trio principal, no entanto, segue em uma crescente sensacional ao longo dos sete episódios. Cada um dos dramas das três personagens é apresentado de forma eficiente pelo roteiro e montagem, que fazem um quebra-cabeça entre presente e passado solucionado brilhantemente nos últimos minutos da série.

Não há aquele sentimento de “nesta noite, em um episódio especial de Blossom”*. A realidade de “Big Little Lies” é crua, mas, ao mesmo tempo, sensível. Aqui, há de se reconhecer a força do trabalho do trio de protagonistas. Reese Witherspoon tem o apoio de one-liners eficientes na função de apresentar sua personagem como uma mulher firme em suas convicções (‘Eu gosto dos meus rancores. Eu cuido deles como animais de estimação’) e, ao mesmo tempo, vítima de um conservadorismo que ainda permeia a sociedade norte-americana (‘Machucados curam. Estigma dura para sempre’).

Atriz que teve certa dificuldade de conseguir bons papéis após o título de “Queridinha da América” e o Oscar por “Johnny e June”, Witherspoon prova seu talento para além das comédias românticas. Ela, que foi rejeitada para o papel de Amy em “Garota Exemplar” (filme que produziu, assim como ‘BLL’), tem aqui a chance de interpretar uma personagem imperfeita, que tenta segurar as pontas de uma família que não dá liga.

Quem também tem um papel à altura de seu talento é Nicole Kidman. A atriz deve ganhar o Emmy de melhor atriz por Celeste, mulher que esconde as marcas da violência física que, para ela, são apenas um “problema” no casamento perfeito com Perry (Alexander Skarsgaard). As cenas da personagem na terapeuta, que a ajuda a entender todos os ciclos do relacionamento abusivo, são um testamento do talento da atriz, que vai da negação à vergonha e à coragem com muita verdade.

O trio principal é fechado por Shailene Woodley, que finalmente consegue um papel interessante depois de várias bobagens como a série “Divergente” e o insosso “A Culpa é das Estrelas” (onde, justiça seja feita, ela tem um bom desempenho a despeito do roteiro fraco). Shailene tem o trabalho mais complexo, ao passo em que vive uma mulher misteriosa, com um passado de abuso sexual e, no presente, um filho potencialmente problemático. A caçula do elenco adulto não decepciona e entrega um trabalho eficiente e cheio de camadas, com direito a converter emoção em uma simples corrida na praia.

Ah, e para dizer que não falei das flores, as crianças são uma atração à parte na série, especialmente a precoce Chloe (Darby Camp), responsável por introduzir a deliciosa trilha sonora (Fleetwood Mac! Alabama Shakes!) em momentos-chave, e o complexo Ziggy, que o ator mirim Iain Armitage consegue defender em cenas difíceis que divide com a personage de Shailene Woodley.

“Big Little Lies” talvez não funcione como série de temporadas, como há a possibilidade – em uma história como essas, corre-se o risco de virar uma “Grey´s Anatomy” da vida, cheia de reviravoltas forçadas (mas beijos, Shonda, te amo, só não mata o Karev). O formato enxuto da minissérie lhe dá mais profundidade, e o gosto de história com início, meio e fim. O desfecho, a propósito, consegue colocar todas as personagens em rota de colisão e, assim, mostrar a elas que a união é maior que qualquer competição forjada por causa de uma tarefa escolar ou de uma festinha de aniversário.

Se há moral em “Big Little…”, essa moral é que as tais “pequenas grandes mentiras” são como bombas-relógio que vão estourar no pior momento. E a minissérie que começou mostrando a rivalidade acaba por mostrar a descoberta da sororidade entre mulheres “criadas” para odiar umas às outras.