Em 2011, Black Mirror estreou na televisão britânica contando a história de um Primeiro Ministro que era chantageado a praticar sexo, ao vivo pela internet, com um porco. Essa chantagem ocorria após o sequestro de um membro da família real. Os sequestradores não queriam dinheiro nem tinham reivindicações políticas. Apenas queriam humilhar o PM, na frente do maior palco já criado na história humana, o palco online, deixando o burburinho dos internautas fazer o resto. Era triste, estranhamente engraçado e cheio de suspense, e levava o espectador a pensar: “Puxa, isso poderia acontecer na realidade. Um dia”.

Difícil imaginar um início mais potente do que este para o incomum projeto dos roteiristas e produtores Charlie Brooker e Annabel Jones. Black Mirror, como se diz popularmente, “chegou chutando a porta”, e se tivesse parado ali o programa já teria produzido uma memorável hora de TV. Mas aquele era só o começo: com duas temporadas de três episódios cada e um especial de Natal – que é tudo, menos “natalino” – Black Mirror delimitou seu lugar na cultura popular do momento ao abordar em suas histórias a relação, muitas vezes problemática, entre o ser humano e as novas tecnologias. E a série fez isso apostando no formato de antologia: cada episódio conta uma história independente e fechada, como a velha Além da Imaginação, por exemplo. Aliás, essa comparação não é descabida: Black Mirror é o Além da Imaginação moderno, da era das redes sociais, e explora as ansiedades do público de hoje do mesmo jeito que a criação de Rod Serling fazia na sua época, os anos 1960.

A série passou de atração cult a fenômeno mais conhecido e popular quando passou a integrar o catálogo da Netflix, e esta nova temporada de seis episódios, agora produzida diretamente pelo maior serviço de streaming do mundo, vem para consolidar o programa e até ampliar o seu escopo. Afinal, ano que vem teremos mais uma fornada de seis episódios para apreciar…

Quanto aos seis que compõem esta terceira temporada, temos um mais fraco, um mediano, um muito bom e pelo menos três que já merecem figurar entre os clássicos da série. Em tempo: meus episódios favoritos das temporadas passadas são O Hino Nacional e 15 Milhões de Méritos, da primeira, e Volto Já, da segunda, e Natal Branco também é excelente.

Black Mirror: Playtest

Começando pelo pior: Versão de Testes (Playtest) até traz uma ideia interessante, sobre um rapaz (Wyatt Russell) que aceita participar do teste do novo produto da companhia Saito Games, um jogo de realidade virtual conectado diretamente ao cérebro do jogador. Nada pode dar errado, segundo o pessoal da empresa… Mas sendo este um episódio de Black Mirror, é claro que as coisas darão errado, com o herói preso dentro de uma casa virtual sendo confrontado com aranhas e outras coisas esquisitas. Não chega a ser ruim, e o diretor Dan Trachtenberg, o mesmo do interessante Rua Cloverfield, 10 (2016), faz o que pode para manter as coisas interessantes visualmente. Mas o episódio sofre por ter uma trama previsível, parecida com a dos episódios de “Holodeck” e realidades virtuais de Jornada nas Estrelas: A Nova Geração – não escapa nem do clichê “pensei que já saí, mas ainda estou na simulação”. Desculpe, Black Mirror, mas Jornada já fazia histórias desse tipo trinta anos antes de você existir…

Black Mirror: Men Against Fire

A realidade virtual é utilizada de maneira bem mais interessante em Engenharia Reversa (Men Against Fire), sobre um soldado (Malachi Kirby) encarregado de combater “baratas”, os inimigos monstruosos – parecem vampiros – de uma guerra indeterminada e futurista. Porém nem tudo é o que parece… Algumas cenas fazem lembrar da crise moderna dos refugiados, mas o tema principal aqui é o da desumanização do Homem, transformado pela tecnologia numa ferramenta do Estado. Além disso, é um episódio grandioso e bem produzido, com cenas de ação e violência, e participação de Michael Kelly, de House of Cards.

Black Mirror: Hated in the Nation

Já o episódio que encerra a temporada, Odiados pela Nação (Hated in the Nation), é mediano e sofre por pecar pelo excesso: dura quase uma hora e meia e, nele, Charlie Brooker joga praticamente tudo no liquidificador. A trama envolve uma investigadora da polícia (a sempre ótima Kelly Macdonald) que investiga um assassinato cometido após ameaças online, e se depara com uma megacorporação, o Twitter como palco de um jogo sádico, drones e abelhas assassinas. Mesmo com todos esses elementos ligados numa mesma trama, o episódio acaba não avançando muito além dos velhos clichês “as redes sociais são malignas!” e “estamos todos sendo vigiados!”.

Black Mirror: Shut Up and Dance

Dentre os três melhores, Manda Quem Pode (Shut Up and Dance) é uma verdadeira história de horror assustadoramente plausível. Um jovem (Alex Lawther) tem seu computador invadido por um malware e começa a ser chantageado por desconhecidos e forçado a cumprir várias tarefas. Logo ele se junta a um parceiro (Jerome Flynn, o Bronn de Game of Thrones), outro alvo de chantagem, e a cada nova revelação eles adentram mais fundo numa trama de repercussões terríveis para ambos. Ágil, com muito suspense e bem defendido pelos atores, este é um dos destaques da temporada.

Black Mirror: Nosedive

O terror é de outro tipo em Queda Livre (Nosedive): o terror das mídias sociais onipresentes e dominando cada aspecto de nossas vidas. Na sociedade de um futuro próximo, Lacie (Bryce Dallas Howard) é uma mulher que recebe o convite para ser madrinha de casamento de uma velha conhecida. Ela vive num mundo onde tudo é avaliado – qualquer pequena cortesia ou falta de educação recebe “likes” ou “dislikes” imediatos que podem lhe render mais ou menos pontos, e estes são necessários para uma vida melhor, com mais status. A imprevisível jornada de Lacie até o casamento é bem conduzida pelo desempenho vivaz de Howard e pela direção de Joe WrightQueda Livre é, de longe, a melhor coisa que o diretor fez desde Desejo e Reparação (2007). O episódio, engraçado e ao mesmo tempo estranho e sombrio, é o único da série até agora não roteirizado por Charlie Brooker: a atriz Rashida Jones e o roteirista Michael Schur roteirizam este segmento, baseado numa ideia inicial de Brooker.

Black Mirror: San Junipero

E San Junipero se constitui no episódio mais emocional da série até hoje, ao enfocar o relacionamento entre a tímida Yorkie (Mackenzie Davis) e a cheia de vida Kelly (Gugu Mbatha-Raw), um caso de amor que começa nos anos 1980 com um divertido clima retrô. Mas logo um elemento futurista se infiltra na história, que consegue a proeza dupla de emocionar o espectador, que torce pelo amor das duas personagens, e satirizar a cultura de nostalgia na qual nos vemos imersos hoje.

Mas, acima de tudo, San Junipero impressiona por introduzir uma ideia poderosa na mente do espectador: a de que um dia a tecnologia vai tornar possível uma espécie de “vida após a morte” para a humanidade, resolvendo assim o maior dos nossos dilemas existenciais. Impossível? Muito fantasioso? Bem, muitas das tecnologias existentes hoje foram vistas primeiro em filmes e seriados de ficção-científica. Black Mirror é provavelmente o maior expoente televisivo do gênero hoje, e grande parte do impacto da série se deve ao fato de seus autores reconhecerem que a ficção-científica já chegou, ou pelo menos está logo ali, a alguns minutos ou cliques de distância. Afinal, a detetive de Odiados pela Nação diz em dado momento: “Nunca pensei que viveria no futuro, mas estou nele”. A história de San Junipero parece apenas um pouco mais fantasiosa do que ver o primeiro ministro inglês transando com um porco na internet. Pode acontecer. Aliás, mais do que isso: parece quase inevitável que aconteça. Um dia.