A maior razão (senão a única) para se ir ao Amazonas Film Festival é a chance de poder deparar-se com um grande filme. Claro, as celebridades (que neste ano estão em número bem reduzido) dão glamour ao evento e chamam público, o que é imprescindível, mas aí já não estamos falando de cinema.

Se é em filmes que você está interessado, as chances são que você pode se deparar com obras magníficas, potencialmente até ganhadoras do Oscar – foi assim, por exemplo, com A Separação, o vencedor da estatueta de Melhor Filme Estrangeiro em Hollywood. Outras produções que passaram pelo Festival e foram aclamadas mundo afora são O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2009), A Estrada (2009), Lixo Extraordinário (2010) e Inverno da Alma (2010) – isso sem falar nas que mereciam sê-lo, como Submissão, exibido ano passado, e A Fonte das Mulheres, de 2011. É a esses filmes que eu comparo Cabelo Ruim, de Mariana Rondón, que fechou a segunda noite do Festival pela Mostra Competitiva de Longas Metragens. Pois trata-se de um filme excelente, com roteiro sensível, direção segura e atuações estupendas do elenco.

Na trama, Junior (Samuel Lange, num trabalho incrivelmente maduro) é um garoto de 9 anos, constantemente rejeitado pela mãe, Marta (Samantha Castillo), que não aceita o seu jeito de ser. Junior gosta de cantar e dançar, assiste a concursos de miss pela TV e sonha em alisar o cabelo crespo, para ficar com “cara de cantor”, conforme explica à amiga (a ótima Maria Emilia Sulbarán). Junior é gay – e, na cultura machista da Venezuela, cuja miséria e tumulto formam a moldura trágica para o dia-a-dia aborrecido das crianças, isso quer dizer sofrimento certo, o que causa verdadeiro pânico à sua mãe. Para tentar “consertar” o garoto, Marta vai fazer de tudo – e as consequências disso em Junior são a preocupação do filme.

Dividido em episódios, Cabelo Ruim adere ao realismo áspero que é a marca de boa parte do cinema latino-americano atual. Não há concessões à sutileza ou à elegância – os devaneios de Junior, as transas de Marta, as discussões desta com Carmen (avó do garoto, vivida por Nelly Ramos), o desencanto geral – tudo está “na cara” do espectador, compondo um quadro desolador. Numa decisão acertada, porém, o ponto de vista adotado pela história é o do menino, o que faz o filme fugir à tragédia mais explícita. No lugar das desgraças que afligem a vida de Marta, mãe solteira e desempregada (além de Junior, ela tem um filho ainda bebê), temos os diálogos divertidos e os dilemas singelos de Junior e sua melhor amiga (sequências, por sinal, que tratam as crianças com maturidade, ao contrário do curta que antecedeu Cabelo Ruim, o infantilóide Pierre e a Mochila). Isso adiciona uma pungência inesperada, que só faz ressoar mais forte o drama da vida do protagonista.

O elenco, afinadíssimo, é certamente o grande destaque do filme. Lange enfrenta com firmeza as exigências de um papel dificílimo, subvertendo o drama com a sua espontaneidade de criança. Samantha Castillo mostra intensidade e entrega total como uma mãe ao mesmo tempo protetora e brutal, que chega a fazer sexo na frente do filho para mostrar a ele o “amor entre homem e mulher”. Todos os papéis secundários também são seguramente conduzidos pela diretora e roteirista, que já havia mostrado o mesmo talento e sensibilidade em Postales de Leningrado, de 2007, que também trazia um elenco infantil.

Com suas múltiplas camadas, a tragédia íntima de Junior e a nacional da Venezuela se alinham para fazer um filme que certamente vai estar entre os grandes premiados desta edição do AFF.

Cena de Pelo Malo, de Mariana Rondón