Num primeiro momento, a começar pelo título, parece que o filme Capitão Fantástico é mais um exercício de transpor para o cinema algum super-herói do mundo dos quadrinhos ou dos games. Mas, engana-se quem assim imagina. O filme do também ator de poucos filmes Matt Ross não tem nada a ver com ação e aventura. Pelo menos no sentido que tradicionalmente o cinema tem tratado esses gêneros.

Se há aventura é uma aventura no mundo real, na expectativa de alguém não se deixar tragar pelo modo de vida moderno do sistema capitalista atual. É alguém que resiste à avalanche da modernidade (ou pós-modernidade). Assim é o “capitão fantástico” Ben, interpretado de forma excepcional por Viggo Mortensen, pai de seis filhos que decide afastar-se da chamada “civilização” e refugiar-se num ambiente ainda selvagem no noroeste do Pacífico. Ele e Leslie, sua esposa e mãe da prole, iniciaram um projeto quase surreal: construir uma espécie de paraíso autossuficiente, onde os filhos são educados e preparados para a vida segundo suas perspectivas políticas e idealistas, tendo como orientação as reflexões do linguista e crítico anticapitalista norte-americano Noam Chomsky.

O filme inicia com Ben e seus filhos numa caçada sem armas de fogo em plena mata, o que parece sugerir ao espectador tratar-se de alguma película com tema ainda na idade primitiva do Homem. Mas logo vemos que não: é mais inusitado ainda. Ben e os filhos apenas estão “se virando” para garantir a alimentação natural e logo compreendemos que é essa é apenas uma das atitudes intencionais de romper com o mundo “civilizado”. Ficamos sabendo que Leslie está afastada daquele cenário há alguns anos, em tratamento de uma grave doença numa grande cidade. Os filhos, de idades entre 5 e 18 anos e com nomes propositalmente únicos (Bodevan e Vespyr, por exemplo) vivem nesse universo selvagem e têm sua perspectiva de vida moldada por essa forma “primitiva” vinculada ao mundo natural, completamente alheios ao ambiente civilizado tão perto deles. A morte da mãe por depressão, noticiada por Ben de forma natural, os faz entrar em contato direto com essa sociedade circunvizinha, que os recebe sem entender exatamente quem são.

A disposição de irem pegar o corpo de Leslie e proceder à cremação, conforme era seu desejo por ser budista e acreditar que suas cinzas serviriam assim para reciclar a vida, encontra forte resistência na família dela, com o pai, igualmente bem interpretado por Frank Langella, um poderoso e rico empresário rural, que imputa a responsabilidade da morte da filha a Ben, e quer que ela seja enterrada segundo os rituais cristãos. É esse impasse familiar que provocará nos filhos as percepções e reações da “civilização”. E é algo semelhante que ocorre também no espectador: embevecidos que ficamos com aquela forma de vida – que nos é mostrada singela, mas vigorosa para a formação das crianças – vamos percebendo o quanto prejudicial é a vida no sistema extremamente consumista e individualista em que vivemos. Isto é oferecido por Matt Ross com equilibrada e eficaz dose de humor e drama.

Todos nós vivemos hoje as transformações que a revolução tecnológica proporcionou, com a aceleração do ritmo de vida e a proliferação da informação. “Há mais informação circulando no mundo do que é possível ser captada pelas pessoas”. Essa frase sintetiza o momento que vivemos, com os meios de comunicação (incluindo a internet) a ocupar cada vez mais o campo da formação ética, social e política nos indivíduos. Os jovens, sem se perceberem, são os que mais sofrem com essa mudança de paradigma pedagógico, com o consumismo, a violência e a proliferação das armas. Manipulados, alienados em seus celulares, mal alimentados, com uma infância e juventude vulneráveis, os jovens de hoje nos desafiam a repensar os modelos educativos e as formas convencionais de preparo das novas gerações para enfrentar um mundo cada vez mais conflituoso. No momento em que se promove uma reforma no ensino médio brasileiro retirando o conhecimento mais humanista, coberto com a sociologia, filosofia, a literatura e artes essa precarização na formação para o mundo tende a se tornar mais intensa. A busca por uma educação calcada em bases mais consequentes para a juventude enfrentar os desafios do mundo é o tema do filme de Matt Ross.

Capitão Fantástico é um filme sob o manto do cinema independente, com uma abordagem original sobre a ideia de autenticidade, algo raro de se encontrar na sociedade moderna. O roteiro de Ross discute esse desequilíbrio entre os conceitos de “civilização” e “barbárie”, altamente conflituosos, ainda mais quando se vê que o processo de preparo dos filhos para a vida inclui situações que os colocam em iminente perigo. No julgamento da convencional educação, essa, por exemplo, é uma situação inadmissível, levando Ben e sua prole a “choques civilizatórios”. Eles fazem parte de uma espécie em extinção; no mundo pré-fabricado em que as pessoas vivem nas grandes cidades, nos paradigmas que aceitamos como bons nas nossas sociedades mecanizadas e assoladas pelo conformismo, não há espaço para eles. Alguém poderá argumentar que o modo de vida proporcionado por Ben aos seus filhos é impositivo, autoritário e desumano; sem dúvida, é algo extremado e que seguramente não terá como evitar o conflito iminente civilizatório. Mas, se observarmos os sistemas educacionais promovidos pela “civilização”, estes igualmente não oferecem uma solução para a questão. A disfunção escolar, a apatia e o desinteresse político da juventude, a dedicação extremada ao mundo dos celulares, a má alimentação, são elementos presentes de atração duvidosa.

Se Capitão Fantástico não é uma obra-prima do cinema, é, sem dúvida, um filme que nos fisga a atenção desde o início e nos seduz com sua trama e fotografia exemplares. Apenas o final compromete a intenção inicial, com Ross propondo uma espécie de conciliação entre os dois mundos, na perspectiva de oferecer “alternativas” possíveis de convivência dos filhos de Ben (e de todos nós?) neste mundo de século XXI. A última missão a que se propõe a família de Ben é arriscada e quase surreal: resgatar o corpo enterrado de Leslie para cremá-lo num ritual libertário no alto de uma colina ao som da música de Guns N’Roses. É uma linda e intensa alegoria ao passado, com um ato simbólico da liberdade do corpo para que volte a integrar-se à natureza. Também é, num certo sentido, uma homenagem aos movimentos libertários hippies e a toda uma época que começou a definhar com o surgimento da revolução tecnológica dos anos 1980.

A restrição que se pode colocar a Capitão Fantástico está justamente nessa visão que Matt Ross nos impinge ao final, como que aqueles valores demonstrados por Ben e sua família já estivessem todos superados pelo automatismo do mundo corrente. Ben, sem dúvida, é um produto típico do movimento hippie e ele e seus filhos refletem – não só nos trajes – os princípios da contracultura, libertários, pacifistas, comunitários, beatniks que impregnaram a cultura norte-americana e todo o mundo. É mais radical ainda que o sentido de vida comunitária que nos mostra Thomas Vinterberg no recente e belo “A Comunidade”. Mas Ross sugere que a celebração final e o encaminhamento dos destinos dos filhos de Ben é uma espécie de despedida desses princípios e a sua capitulação aos padrões da modernidade. Nem suas convicções solidamente construídas sobre ideologias libertárias parecem ser capazes de enfrentar as doses cavalares de consumismo e individualismo que proliferam na sociedade do século XXI. E aí reside nosso desafio: se cedermos totalmente a estes “novos” valores, qual modelo de sociedade atingiremos? Os índices mundiais revelam que esse caminho nos leva crescentemente a um mundo mais violento, com doses extremadas de intolerância e preconceito, fome e miséria, além da elevada taxa de corrupção e crise moral. É hora de repensarmos quais valores inscritos em Capitão Fantástico são necessários de serem recuperados.

Um filme a conferir, seguramente.