O novo filme de Miguel Faria Jr. poderia se chamar Chico Fala. Só por isso – por colher o depoimento mais abrangente do artista sobre sua vida e carreira – o filme já valeria a pena. Mas Chico Buarque: Artista Brasileiro também ilumina o lugar e o tempo que foram capazes de produzir um Chico Buarque. Pelas palavras desse personagem raro, autor de tantas canções (e agora, romances) que continuam a ter tanto a dizer sobre todos nós, Artista Brasileiro permite reencontrar esse Brasil musical, poético e justo que a obra de Chico Buarque evoca.

Quando o projeto começou, Buarque estava terminando de escrever seu último livro, O Irmão Alemão, lançado ano passado. Primeiro romance assumidamente biográfico do escritor, cujo mote é um episódio ocorrido em sua juventude – a descoberta, por acaso, de que seu pai teria tido um filho na Alemanha, onde passou um tempo estudando –, Irmão acabaria levando a outro acontecimento marcante, captado por Miguel: a descoberta real do rapaz, que não só existiu, como também tentou a carreira artística, cantando (!) e atuando na Berlim dividida pelo muro.

O registro dessa descoberta – um Chico eufórico diante das imagens, que mostram a semelhança física do “irmão alemão” com o pai de Chico, e até com ele próprio – é um dos pontos altos do filme, um daqueles flagrantes felizes que são a raison d’être dos documentários. Tão boas quanto são as várias imagens raras do artista, garimpadas em programas de TV e filmes esquecidos das últimas décadas: uma espectadora pergunta se Chico é homossexual (a resposta que se segue é maravilhosa); recém-chegado à Itália, ele tenta se esquivar de perguntas sobre a turbulência política no Brasil (“Não posso falar”); Chico ouve sério, compenetrado, a interpretação de Maria Bethânia para “Olhos nos Olhos”, durante as gravações do LP Pássaro Proibido (1976); o jovem cantor de “A Banda” é condecorado em prefeituras, câmaras e até quartéis pelo Brasil afora; o olhar tenso, quase perturbado, em meio à polêmica apresentação de “Sabiá” num festival; cândidas cenas de intimidade doméstica com Marieta Severo e os filhos; e encontros hilários com Nelson Cavaquinho e João do Vale são outros exemplos.

Também há boas histórias: empolgado com um jogo beneficente que faria ao lado de Zidane, Figo, Romário e outros, Chico resolve bancar o jogador profissional por um dia – o que inclui chegar de carrão e usar terno e óculos de grife; a tentativa de embebedar um censor (por sinal, ex-zagueiro da seleção brasileira, que Chico admirava) para que este liberasse uma apresentação de “Tanto Mar”; ou a visita de um sabiá “gago” à sua janela, em cujo canto titubeante ele descobriu a melodia de sua própria “Construção”. O retrato amoroso do artista também inclui homenagens de colegas: Bibi Ferreira assombrando com a música e os textos de Gota d’Água; depoimentos emocionantes de Tom Jobim e Vinicius de Moraes; e, claro, as apresentações musicais: assim como em Vinicius (2005), Miguel Faria Jr. intercala as entrevistas com releituras de canções e textos do artista – Mart’nália e Adriana Calcanhotto, marotas, em “Biscate”; Mônica Salmaso, sempre esplêndida, em “Mar e Lua”; e a sensacional Laila Garin, revelada em 2013 com Elis, o Musical, e que arranca lágrimas com sua interpretação de “Uma Canção Desnaturada”. Além, é claro, do próprio homem, que apresenta uma inusitada “Sinhá” (do seu último álbum, Chico, de 2011) e a linda “Paratodos”, de onde saiu o nome do filme.

Com tanto amor, faltou, talvez, uma descida mais profunda às contradições do personagem: a sua participação na débâcle da Procure Saber, a associação de artistas formada por Chico, Roberto e Erasmo Carlos, Djavan, Gil e Caetano e outros notáveis, que defendeu causas nobres (moralização da gestão de direitos autorais no Brasil) e vergonhosas (o direito a reparação por informações difamatórias, o que, na prática, tornou possível a censura prévia de biografias). Ou algumas posições polêmicas durante a ditadura, como o texto altamente retórico e inflamado sobre os anseios “do povo”, no preâmbulo de Gota d’Água, ou sua aproximação com Cuba, que se traduziria tanto num belo diálogo humano e musical – levando-o a divulgar as maravilhas de gente como Silvio Rodríguez e Pablo Milanés –, quanto em simpatia pelos irmãos Castro.

Mas não seria o bastante para desmerecer o belíssimo painel humano e artístico de Chico: Artista Brasileiro, onde coisas como a bossa nova de Tom, Vinicius e João Gilberto, o samba de Noel Rosa, Nelson e Mário Reis, a arquitetura de Oscar Niemeyer, a poesia de Manuel Bandeira, Drummond e Cabral ou a prosa de Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Lúcio Cardoso formam um ideal de Brasil, tradicional e sofisticado, talvez perdido para sempre no tempo (e Chico, numa das falas mais interessantes do filme, fala sobre essa impossibilidade), mas cujo legado de beleza e elaboração continua vivo em sua arte. Tanto para fãs quanto para quem está descobrindo o cantor agora, Chico: Artista Brasileiro é um documento necessário, relevante e comovente.