É difícil fazer a crítica de “Christine” sem entregar um ponto crucial dessa história verídica aos menos inteirados sobre a personagem-título. Omitir tal fato também refletiria em não poder trazer à tona no texto o ponto gerador de maior incômodo na representação trazida a ela. Faz-se aqui então a escolha por trazer abertamente spoilers, apesar de que, muito provavelmente, o espectador desse filme chegou até ele já sabendo o desfecho da história por ser um dos “causos” mais sinistros do jornalismo norte-americano. Portanto, esteja preparado para saber pontos importantes da trama a partir do próximo parágrafo.

“Christine” é uma cinebiografia que emula, especialmente na montagem e trilha musical, o clima de constante tensão da personagem principal, uma repórter televisiva e muito, muito perfeccionista. Interpretada por Rebecca Hall, tem-se ainda uma surpresa agradável em como a atriz, que nunca foi lá de muito destaque, mostra uma atuação tão poderosa. Ela domina com maestria a representação de uma pessoa que sofre severamente de depressão, e como lida com ela no cotidiano.

A trama acompanha os últimos meses de vida de Christine Chubbuck, que luta para que suas reportagens de cunho social tenham mais destaque na rede de televisão em que trabalha, ao mesmo tempo em que realiza atividades voluntárias para crianças em um hospital, enfrenta seus demônios pessoais e a descobre uma doença que torna mandatório que ela retire um de seus ovários, o que dificultaria os planos futuros de ser mãe. Ver-se envolta de incertezas é um verdadeiro inferno para a personagem, que por buscar atingir padrões de qualidade sempre muito altos, busca ter controle sobre tudo o tempo todo, em vão.


Contexto é importante

No caso de “Christine”, entender o contexto da trama é importante, e explicá-lo é algo que a direção de Antonio Campos faz apenas parcialmente. Ele consegue mostrar bem, por exemplo, as transformações do jornalismo televisivo na década de 1970 no plano técnico, com a inserção da tecnologia do vídeo nas redes, modificando as rotinas de trabalho dos jornalistas e, por conseguinte, as demandas de programação, o que leva, em parte, à valorização também do sensacionalismo nos telejornais.

No entanto, Campos apenas pincela que esse último é sintomático: faltam elementos para localizar melhor a desilusão que marcou tal período nos EUA, com a ascensão e queda do Presidente Nixon, a Guerra no Vietnã (que trouxe imagens em movimento chocantes da morte em front de batalha diariamente pela primeira vez na história) e, principalmente, a desilusão dos movimentos jovens pós-década de 1960. No que diz respeito ao ambiente de trabalho de Christine, o machismo escancarado também é pouco representado, algo errôneo quando se trata de redações de jornal ontem e hoje.

Ambientar a desilusão social seria uma janela importante em “Christine”, a qual vemos apenas limitadamente. Em termos narrativos, ela seria a chave para entender porque Christine, a personagem, queria tanto investir em matérias construtivas, positivas, que inspirassem mudança social, e não que simplesmente regurgitassem e cuspissem nos televisores a violência do cotidiano. Ao invés disso, a direção de Campos opta por pontuar repetidas vezes como a frustração de Christine no plano amoroso a afeta, o que torna simplória a representação da depressão em vários momentos; não ter um namorado é apenas um dos inúmeros motivos da depressão de Christine, incluindo-se aí alguns bem impactantes que nem chegam a ser abordados no filme.


Mais que isso

Por sorte, a atuação de Rebecca Hall salva o filme dessas derrapadas, deixando o drama/suspense sempre alinhado no gerar empatia com uma personagem que, a princípio, parece tão difícil de se gostar. O trabalho da atriz mostra, sem precisar dizer, como a personagem enfrenta uma constante dificuldade de se aproximar e se conectar com o outro, além de como ela pode distorcer com tanta facilidade a realidade, de forma a se ver numa posição mais negativa do que realmente está, o que é exatamente como os especialistas descrevem, em linhas gerais, o dia-a-dia de alguém com depressão e transtornos similares.

O retorno ao status de relacionamento de Christine ao longo do filme é, então, a pedra no calcanhar do roteiro de Craig Shilowich (“Dark Horse”; “Rio congelado”). O filme coloca essa questão na boca da repórter quando ela conversa com a mãe, Peg (J. Smith-Cameron), retoma na cena de ida ao médico, repete quando ela participa do encontro de um grupo de auto-ajuda… a princípio, nada de errado, posto que os registros sobre a história de Christine dão conta de que ela realmente se sentia frustrada no plano amoroso. Mas tal insistência não se vê em relação a como ela se sentia isolada, sem amigos ,e nem mesmo em como ela não aprovava a política do jornal “espreme que sai sangue”. Ela critica tal “filosofia de empresa”, mas nunca de forma tão incisiva e repetitiva, o que vai na contramão de relatos de parentes próximos a ela, os quais afirmam que o trabalho havia se tornado uma fonte de intenso desapontamento para Christine em seus últimos meses de vida.

Permitir que a personagem-título fosse ainda mais multifacetada seria bem mais interessante ao filme, e para isso, o retorno à questão da melhor representação de contexto se faz essencial de novo. Como uma mulher de 29 anos no início dos anos 1970, Christine vivenciara anos de intensa conscientização dos direitos das mulheres, dentre outras pautas feministas em consonância com suas ambições e atuação profissional, algo que é pouquíssimo presente no filme.

Na contramão disso, o ambiente de trabalho ainda é marcado por claras diferenças pautadas no privilégio masculino. Podemos ver isso na cena em que o dono da rede diz a ela que seu colega homem foi promovido a âncora numa estação maior por ter uma “presença masculina e estável”, assim como a mulher escolhida para ser sua companheira de bancada foi “a loirinha bonitinha dos esportes”, ao passo que Christine não se enquadra nesse perfil de aparência física desejável. O plano próximo no rosto de Hall destaca exatamente a distância entre elas.

Dar conta de expressar essas tensões entre o ser mulher enquanto profissional, ter preceitos éticos discordantes dos do telejornal e, no meio disso tudo, sofrer de severa depressão parece ter sido simplesmente demais para a direção de Campos, e ele sacrificou no filme justamente as partes que o impedem de ser mais impactante. Chega a ser problemática a simplificação do diretor ao quase colocar a protagonista como um estereótipo de “feminista frustrada e infértil”, o que, friso, a atuação sensível de Rebecca Hall impede a todo momento de acontecer. É mais graças a ela que quando temos o desfecho da trama, com o suicídio de Christine ao vivo na transmissão do jornal, aquela morte, apresentada em planos simples e poucos e breves cortes, não perde o impacto. Podemos dizer que uma boa direção de atores não se reflete necessariamente em boa direção no geral? Talvez.

Apesar dos pesares, “Christine” é um filme que merece ver visto e ter mais projeção. Ao espectador atento, ele instiga importantes reflexões sobre a natureza do que consumimos como notícia hoje, em tempos de voz ativa aos receptores das mensagens (receptores, que, aliás, há muito deixaram de ser passivos perante os processos de produção e filtragem de pautas), para além da bela fotografia esmaecida e da atuação de Hall, que poderia entrar fácil na lista final de indicações ao Oscar num mundo mais justo.