Quentin Tarantino uma vez disse que as cinebiografias são “desculpas para atores ganharem Oscars” e as chamou de “um tipo corrupto de cinema”. Podemos até debater a segunda colocação, mas é meio difícil contestar a primeira. Nestes últimos anos, as cinebiografias realmente serviram como veículos para vários atores e atrizes ganharem Oscars e outros prêmios. E se as cinebiografias são “corruptas” em si, não sei dizer, mas que muitas vezes apresentam problemas e são dominadas por clichês, isso são sim.

Esse domínio é tão forte – ainda mais em anos recentes, quando as cinebiografias se tornaram um dos tipos de filme preferidos da Academia de Hollywood – que nós resolvemos elencar aqui cinco grandes clichês desse tipo de produção. Fugir dos clichês é difícil, mas muitas cinebiografias recentes são tão formulaicas que parece que nem tentam. Está se tornando cada vez mais difícil, para os espectadores e críticos, tolerar coisas como…


Endeusamento

A maioria dos espectadores aceita a frase “Baseado em fatos reais” no início de um filme como uma verdade absoluta. Mas não é bem assim, não é mesmo? Muitas vezes, em prol do endeusamento do biografado, os roteiristas e diretores de cinebiografias ora distorcem fatos históricos, ora omitem informações que poderiam abalar nossas simpatias pelos protagonistas.

Dois grandes culpados disso são o diretor Ron Howard e o roteirista Akiva Goldsman. No oscarizado Uma Mente Brilhante (2001), eles omitiram fatos da vida do matemático John Nash (vivido por Russell Crowe) que poderiam mudar a percepção do público sobre ele. Por exemplo, o filme não conta que Nash chegou a se divorciar da esposa, interpretada por Jennifer Connelly, dando a entender que os dois ficaram juntos pela vida toda – eles chegaram a casar de novo. O roteiro também não menciona os relacionamentos homossexuais de Nash ou o filho que ele teve fora do casamento.

 Já em A Luta pela Esperança (2005), baseado na vida do boxeador James Braddock – também interpretado por Crowe – Howard e Goldsman demonizam o lutador Max Baer, mostrando-o como um sujeito quase sádico e orgulhoso de ser um assassino no ringue, um vilão para se opor ao santo Braddock. Na vida real, Baer realmente matou um homem no ringue, mas se sentiu tão culpado que passou a vida atormentado pelo que fez. Algo bem diferente da figura malvada vista no filme.

Outros filmes culpados de endeusamento dos seus biografados: Coração Valente (1995), Hurricane: O Furacão (1999), A Dama de Ferro (2011), Sniper Americano (2014).


Pieguice

Falando em Uma Mente Brilhante, quem não revirou os olhos para a cena em que Alicia, a esposa de Nash, toca o peito dele e diz que “preciso acreditar que coisas extraordinárias são possíveis”… No fundo, o filme transmite a mensagem – perigosa, até – de que é possível controlar a esquizofrenia com a “força do amor”. Exageros sentimentais são corriqueiros em cinebiografias. Recentemente, Diana (2013) mostrou a sempre confiável Naomi Watts sofrendo com um roteiro que caracterizava a princesa da Inglaterra como uma mocinha de novela. Este ano, até o sóbrio e muito bom Steve Jobs (2015) sucumbiu à pieguice nos seus últimos cinco minutos. O roteirista Aaron Sorkin e o ator Michael Fassbender passam duas horas caracterizando Jobs como um legítimo “babaca” – genial, mas mesmo assim um canalha – apenas para arrumarem uma redenção emocional para ele nos momentos finais da narrativa.


Maquiagem exagerada

Ao longo desses últimos anos, alguns casos de atrizes que “ficaram feias” para os seus papéis em longas biográficos caíram nas graças da Academia: casos de Charlize Theron em Monster: Desejo Assassino (2004) ou de Marion Cotillard em Piaf: Um Hino ao Amor (2007). Em ambos os casos, os desempenhos fortes das atrizes foram complementados por um competente trabalho de maquiagem que as transformou.

Mas e quando a maquiagem chama mais atenção que o desempenho, ou o próprio filme? Recentemente vimos os esforçados Leonardo DiCaprio e Armie Hammer lutando para atuar sob pesadas e nada convincentes maquiagens de idade avançada em J. Edgar (2011) de Clint Eastwood. E Anthony Hopkins estava mais parecido com um membro da família Klump de O Professor Aloprado (1996) do que com o Mestre do Suspense em Hitchcock (2012). Este ano, mais um caso: a maquiagem da atriz Zoë Saldana para o filme Nina, baseado na vida da cantora Nina Simone, praticamente afundou a produção graças à polêmica do “black face”, pois a pela da atriz teve de ser tingida de um tom mais escuro para deixa-la mais próxima à da cantora. Pegou tão mal que até a família de Nina Simone veio a público reclamar.

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Abraçar o mundo com as pernas

Cinebiografias muitas vezes apresentam narrativas episódicas ou mesmo desconjuntadas, porque na hora de contar a história de uma vida muitos cineastas se veem na obrigação de incluir o máximo possível. No passado, biografias como Gandhi (1982) e Nixon (1995) contornavam esse problema graças a um roteiro bem estruturado e, no segundo caso, do longa de Oliver Stone, uma montagem precisa e envolvente. Porém, em anos recentes tivemos biografias com narrativas problemáticas, sendo Ray (2004) e Piaf os maiores exemplos. Ambos apresentam idas e vindas cronológicas que mais atrapalham que ajudam as experiências, a ponto de acontecimentos nas tramas de ambos os filmes ficarem sem resolução. Ao invés de querer “abraçar o mundo com as pernas”, cineastas mais inteligentes vêm fazendo biografias concentradas em momentos específicos da vida dos seus biografados, com maior grau de sucesso. São os casos de filmes como Capote (2005), Control (2007), Milk: A Voz da Igualdade (2008), Lincoln (2012) e Selma: Uma Luta pela Igualdade (2014), por exemplo.


Genialidade não reconhecida

Alguém ainda aguenta mais um filme sobre gênios que precisam lutar contra o mundo ou alguma doença, para provar a própria genialidade? Exemplos não faltam: Uma Mente Brilhante, O Solista (2009), A Teoria de Tudo (2014), O Jogo da Imitação (2014) – neste último, o protagonista chega a gritar: “Vocês nunca vão entender a importância do que estou criando aqui!”. Ao invés de procurar a humanidade nesses protagonistas, muitas vezes os filmes acabam afastando-os do público ao enfatizar as suas genialidades. Já sabemos, antes de entrar no cinema, que Stephen Hawking é um gênio. Ver uma versão edulcorada do relacionamento dele com sua esposa Jane em A Teoria de Tudo, ainda por cima nem centrada nela exatamente, não convence e apenas dá ao ator principal a oportunidade de “imitar trejeitos” do biografado principal. Às vezes isso é suficiente para a Academia, vide o Oscar para Eddie Redmayne…


As boas cinebiografias

Esse tipo de produção é tradicional no cinema, desde a época em que Paul Muni, astro dos anos 1930, interpretou Louis Pasteur e Émile Zola consecutivamente em produções de sucesso – por A Vida de Louis Pasteur (1936), ele ganhou o Oscar de Melhor Ator, comprovando que não é de hoje que as cinebiografias levam atores a ganhar prêmios.

Grandes filmes da história do cinema são cinebiografias, como Lawrence da Arábia (1962), O Leão no Inverno (1968), Lenny (1974), Touro Indomável (1980), A Lista de Schindler (1993), Ed Wood (1994), e mais alguns mencionados no curso deste artigo. Esses filmes têm características em comum dentro do subgênero biográfico: eles não têm medo de expor características negativas dos seus biografados, abraçam a complexidade das pessoas no centro das suas narrativas, e são em geral contidos, abordando apenas um determinado período das vidas dos seus protagonistas, evitando ou minimizando a dispersão e o endeusamento que afligem muitos filmes do tipo.

Porém, a maior cinebiografia do cinema, em minha opinião, permanece sendo a de um personagem que não realmente existiu: Cidadão Kane (1941) de Orson Welles é (ou deveria ser) a planta-baixa de todos os filmes que tentam retratar a vida de alguém. Pois ele extrai grande parte da sua força da constatação de que nós nunca realmente poderemos conhecer ninguém de fato, não importam quantos filmes biográficos se façam sobre essa pessoa. Ele expõe o artifício do cinema ao querer recontar uma história “quase” real, e curiosamente ao fazer isso chega mais perto de expor a essência de uma pessoa do que muitos longas com a frase “Baseado em fatos reais” no início.