Em 1984, George Orwell descreve um futuro em que um governo totalitário mantém toda a população sob sua constante vigilância, e ninguém é capaz de escapar aos olhos onipresentes do “Big Brother”. Mais de 60 anos depois do romance distópico de Orwell ter sido publicado pela primeira vez, a realidade deu um jeito de imitar a ficção, de uma maneira que talvez nem mesmo o autor britânico imaginaria. Não é necessária a presença de câmeras ao nosso redor nos vigiando como em um reality show; tudo o que um governo precisa para rastrear alguém está às suas mãos através das tecnologias que usamos diariamente: e-mails, telefones, cartões de crédito, nossos smartphones no bolso, que sempre sabem dizer exatamente onde estamos. Essa realidade quase orwelliana e, de certo modo, assustadora, é captada com precisão por Citizenfour, documentário dirigido por Laura Poitras e vencedor do Oscar deste ano.

Já sabemos como toda essa história veio à tona, em meados de 2013, quando os jornalistas Glenn Greenwald e Ewen MacAskill divulgaram as primeiras reportagens que mostravam como funcionava o sistema de vigilância global da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA), capaz até mesmo de rastrear e espionar o tráfego de comunicações de líderes mundiais, seja a chanceler alemã Angela Merkel ou a presidenta Dilma Rousseff. Pouco tempo depois, um vídeo nos revelaria também o responsável pelo vazamento das informações: Edward Snowden, analista de sistemas que trabalhava para a NSA e teve acesso a documentos secretos da agência.

A princípio, o grande trunfo de Citizenfour é mostrar como ocorreu o processo que levou à divulgação pública dessas informações. Snowden entrou em contato com Poitras através de e-mails criptografados (e daí vem o título do filme, já que Citizenfour era a assinatura usada por ele nas primeiras conversas), levando em conta o histórico das obras da cineasta, responsável por My Country, My Country (2006) e The Oath (2010), partes de uma trilogia que investiga as sequelas de um Estados Unidos pós-11 de setembro. Na época, Laura já trabalhava no filme que encerraria essa série, tendo a vigilância e a paranoia das agências de inteligência como tema – sendo ela mesma uma vítima da invasão de privacidade do governo americano – e que se transformaria, então, em Citizenfour.

Edward Snowden em Citizenfour, de Laura PoitrasAssim, assistimos ao desenrolar dos acontecimentos na tela quase em tempo real, graças à câmera em estilo de cinéma vérité de Laura, sempre focada em seus personagens e o ambiente ao redor, evitando ao máximo se fazer vista. O resultado é digno de um thriller político de espionagem – o que não seria tão aterrorizante se não soubéssemos que o que estamos assistindo não é ficção. Ver Snowden revelando informações preciosas aos jornalistas enquanto todos estão escondidos num quarto de hotel nos traz uma sensação de perigo, porque reconhecemos os riscos da operação para todos os envolvidos. A presença de elementos surpresa devidamente providenciados pelo acaso, como as sirenes de incêndio do hotel ou o risco do telefone estar ligado, apenas adicionam suspense e tensão ao longa. Além disso, a inserção eventual da trilha eletrônica fornecida pelo Nine Inch Nails, com ruídos e distorções que lembram o trabalho do frontman Trent Reznor em A Rede Social (2010), reforça o tom melancólico e fantasmagórico da história.

Mais interessante ainda é notar que, depois dos quinze minutos iniciais em que Poitras nos fornece um breve contexto acompanhando outras figuras importantes como o “delator” William Binney, também ex-funcionário da NSA, Citizenfour se mostra não só como um thriller, mas como um bom estudo de personagem. Ao acompanhar intimamente Snowden durante uma semana em seu quarto no Mira Hotel, em Hong Kong, a cineasta desvela camadas do homem que ficou marcado na nossa memória como o “traidor” dos EUA, ao expor mundialmente o esquema da NSA. Suas conversas com a equipe revelam sua preocupação constante em evitar mencionar a família e a namorada, por exemplo, para protegê-los de eventuais represálias. Suas motivações, sendo um filho da “geração internet” como muitos de nós somos, ficam claras. Ao mesmo tempo, Snowden se mostra plenamente ciente das consequências de seus atos e disposto a assumir a total responsabilidade por eles – e um belo plano em que Poitras o mostra encarando a vista da janela do quarto ajuda a evidenciar do quanto o rapaz está abrindo mão para levar a história ao público, incluindo a própria liberdade. O longo ato claustrofóbico no hotel é quebrado apenas por imagens de arquivo da CNN, que ajudam a montar o panorama da repercussão do caso.

Graças ao bom trabalho de direção de Poitras e uma montagem certeira, Citizenfour se mostra como um filme essencial para explorar nossos medos do século XXI, em que vemos liberdades individuais sendo ameaçadas e cerceadas pela paranoia e pela invasão de privacidade. Nesse sentido, a cena final é extremamente simbólica: depois de reencontrar Snowden, Greenwald rasga todos os papeis usados na conversa para escrever informações importantes que não poderiam ser ditas em voz alta. Mas não basta rasgar em mínimos pedaços: é preciso juntar cada fragmento e dar um fim a ele, sem vestígios. E, mesmo assim, não há garantia nenhuma que aquele momento privado não tenha sido, de alguma forma, violado.

Poderia ser um filme de terror ou mais um romance de Orwell, mas não é – infelizmente.