Alguns artistas (cineastas, também) preferem não falar muito sobre seu trabalho. O diretor americano Martin Scorsese não parece ter esse problema. O documentarista, critico e historiador de cinema Richard Schickel conduziu entrevistas com Scorsese que às vezes adentravam a noite. Essas entrevistas deram origem ao livro Conversas com Scorsese, lançado em 2010 e trazido para o Brasil pela editora Cosac Naify.

Schickel nos leva por um passeio pela vida do seu entrevistado, deixando-o falar. Eles começam pela infância do diretor e percebemos como aquele garoto de ascendência italiana, asmático (e por isso sempre a observar a vida do alto da escada de incêndio em Nova York), teve as sementes de sua visão artística plantadas desde cedo. O jovem Martin queria ser padre e até tentou o seminário (sem sucesso), presenciava cenas de violência no bairro e o forte temperamento dos seus parentes italianos. Desenhava cenas de filmes, assistia grandes épicos de Hollywood na tela grande e clássicos do cinema italiano (e posteriormente europeu) na pequena TV de casa. A formação do diretor, seus primeiros curtas e todos os seus longas – de Quem Bate à Minha Porta? (1969) até Ilha do Medo (2009) – são discutidos.

Schickel e Scorsese também discutem abertamente sobre como ocorre o processo de escolha de material do diretor. Scorsese tem alguns temas bastante caros a ele, aos quais ele frequentemente retorna. Como o catolicismo entranhado dentro dele e a ideia de punição divina, que aparece em projetos que não necessariamente tem a ver com religião, como Caminhos Perigosos (1973) ou o suspense Cabo do Medo (1991). Ou a dimensão espiritual de Kundun (1997) e também presente no drama Vivendo no Limite (1999). Ou a culpa que muitos protagonistas scorseseanos trazem dentro de si, como o Teddy Daniels de Ilha do Medo. Ou o processo de autodestruição que impomos a nós mesmos – parte importante de Touro Indomável (1980). E ainda a traição, base de Os Infiltrados (2006), e as escolhas que tomamos e como vivemos com elas, melhor exemplificadas pelos protagonistas de A Última Tentação de Cristo (1988) e A Época da Inocência (1993).

O diretor também demonstra gostar bastante da liberdade proporcionada por seus projetos documentários, como o ambicioso e épico No Direction Home (2005) sobre Bob Dylan, e Shine a Light (2007), eletrizante gravação de um concerto dos Rollling Stones.

E a franqueza é o tom da conversa. Schickel demonstra abertamente ter problemas com alguns filmes do diretor – surpreendentemente, com Caminhos Perigosos, que revelou o nome de Scorsese e hoje é considerado precursor de um dos seus melhores e mais famosos trabalhos, o clássico de gangsteres Os Bons Companheiros (1990). O diretor também fala de modo honesto sobre a crise pessoal e o vicio em drogas que quase o levaram à morte no final dos anos 70. Seu amigo pessoal e colaborador frequente, o ator Robert De Niro, é considerado o salvador da carreira e da vida de Scorsese, pois nessa época ele trouxe à atenção do diretor o projeto de Touro Indomável, hoje um clássico aclamado como um dos grandes filmes da historia do cinema americano.

Mas os capítulos onde Scorsese fala um pouco sobre seus métodos de trabalho são, surpreendentemente, os mais interessantes. A forma como ele trabalha com os atores, a montagem, o uso da música e a profunda relação dela com o seu cinema, o uso das cores – todos esses aspectos são abordados. Nesses capítulos fica clara a inteligência e o brilhantismo do diretor. Os leitores recebem uma verdadeira lição de como trabalhar com atores, quando Scorsese descreve como foi gravar a cena de Os Infiltrados com Jack Nicholson e Leonardo DiCaprio – Nicholson faz um chefe do crime organizado que está a um passo de identificar o traidor dentro do seu grupo, o policial interpretado por DiCaprio. A fala do veterano ator (“Sinto cheiro de rato”) e o gesto com a arma, improvisados na hora por Nicholson, deram origem a um dos momentos mais memoráveis do cinema do diretor.

Conversas com Scorsese conquista o leitor principalmente pelo tom de bate-papo informal. O conhecimento enciclopédico sobre cinema, bem como a velocidade e as várias associações livres que o diretor consegue fazer dentro da mesma conversa, podem deixar qualquer entrevistador cansado, mas Richard Schickel é praticamente um equivalente de Martin Scorsese quanto ao conhecimento sobre cinema, e a amizade dos dois dá conta do resto. Sem dúvida um livro imperdível, tanto para fãs do diretor e cinéfilos em geral, quanto para qualquer um que deseje conhecer um pouco mais sobre o cinema do século XX e um dos seus mais importantes artistas.

Sobre Touro Indomável:

SCHICKEL: O que você tinha de resolver?

SCORSESE: A luta comigo mesmo. Você chega a um ponto em que simplesmente se acostuma consigo mesmo: você é aquele, tem de continuar com ele.