Através da publicidade, e da teledramaturgia de massa (leia-se TV Globo), no Brasil adquirimos uma noção bastante peculiar sobre como são os rostos que aparecem na tela e telona. São pessoas brancas, magras, de cabelo liso, preferencialmente de olhos claros, com todos os dentes no lugar, ótima pele, e que apenas se relacionam com seus iguais. E isso em qualquer ambiente, classe social, econômica, etc.. Quase não há exceções, e estas, quando ocorrem, reafirmam a regra.

É interessante constatar como a exceção se torna norma, e que tudo que foge a isso é que soa estranho, mesmo que apenas um passeio a pé pela sua cidade rapidamente explicite que as pessoas reais são mais plurais, tem outras características, outras melaninas, cabelos, sotaques.

É sobre pessoas comuns que se trata Corpo Elétrico, longa de estreia de Marcelo Caetano, colaborador de cineastas consagrados como Kléber Mendonça Filho, Anna Muylaert (que assina a produção associada do filme), Gabriel Mascaro e Hilton Lacerda (um dos roteiristas, junto com Gabriel Domingues e o próprio Caetano). É sobre o cotidiano de pessoas que moram na periferia de São Paulo, que a mídia consideraria feias, inadequadas, desagradáveis aos olhos.

Numa trama que ignora os ditames de roteiro padrão de Syd Field, acompanhamos o cotidiano do paraibano Elias (Kelner Macêdo, excelente), e uma série de funcionários que trabalham numa loja de confecção de roupas em São Paulo. Vemos como este jovem se relaciona com os parceiros de trabalho dentro e fora do serviço, as relações efêmeras com diversos parceiros sexuais, e como ele se insere no ambiente queer da cidade com as suas amigas. Transitando por diferentes espaços, o filme mostra como membros do universo LGBT se relacionam em diversos grupos sociais, partindo do ponto de vista da classe trabalhadora paulistana.

Um olhar precipitado pode acusar Corpo Elétrico de ser sobre o nada, um filme em que nada acontece. É o risco que qualquer longa que não siga a trajetória narrativa padrão corre. Mas isso nunca deveria soar automaticamente como um defeito, ainda mais quando se tem personagens tão cativantes. O que Caetano quer mostrar é a busca, o percurso, desses corpos por prazer, diversão, compreensão, entendimento, pois entende que isso já é o bastante. E está correto.

Estas pessoas extrapolam os ditames capitalistas a quais estão submetidas na árdua rotina de trabalho diário. Mesmo subjugadas a jornadas de trabalho exaustivas, ainda encontram disposição para viver, ver o que está acontecendo na rua, procurar uma transa casual, ou simplesmente tomar uma cerveja pra relaxar.

A cena em que todos, no ônibus, cantam Marrom Bombom, d’Os Morenos é um achado. Cenas como essa colocam o filme num lugar muito diferenciado: o de cinema que você ainda não havia presenciado, que não se parece com nada anterior. Aquele tipo de coisa ridiculamente familiar, mas evidentemente brilhante de se ver na tela

Acompanhamos Elias fugindo de qualquer relação de posse, ou que busque o amor romântico. Enquanto acaba de transar com um parceiro recorrente, conta aos risos como foi uma transa casual com um homem que encontrou numa situação banal, após sair do trabalho. E a sua busca por diferentes corpos e personalidades segue, pois é assim que o personagem se sente em movimento. E claro, nem sempre dá resultado, como na muito bem conduzida cena em que fica claro que um funcionário recém-chegado não é da mesma orientação sexual que a dele. Faz parte.

Na cena mais bonita do filme (e um dos grandes momentos do cinema brasileiro no ano), num belo plano-sequência acompanhamos fragmentos de conversas entre esses funcionários saindo do trabalho e indo para a casa de um deles. De uma conversa, seguimos para outra, e outra, e cada uma é tão banal quanto as demais, mas todas são cheias de beleza, a beleza que se esconde nos ritos diários. Aqui temos um microcosmo dos subgrupos que se formam dentro da coletividade, e como se complementam. Como é possível que o gay afeminado tenha uma boa relação com o evangélico que está de casamento marcado, do imigrante africano que desperta o interesse da mulher negra da periferia, ou de como o rapaz mais instruído se interessa pelos dilemas dos seus amigos de classe mais baixa. Tudo isso bem discretamente, sem chamar a atenção, só deixando que aquelas pessoas conversem entre si.

A proposta de Caetano é mostrar essas relações como sendo inerentes ao ser humano, que sente necessidade de se relacionar, de conviver. É um posicionamento complexo. É negar o conflito por escolha, e não por omissão. É tentar sair um pouco da pecha de filme gay, e tentar o diálogo em outras praças. É claro que essas pessoas ainda sofrem muita discriminação, da homofobia ao racismo, do classismo ao machismo. Mas o que Corpo Elétrico quer é dar um passo a frente, é mostrá-las como pessoas complexas, capazes de ir além do seu nicho, que se abrem para o diferente, mesmo que não compactuem com tudo o que esses outros “grupos” fazem.

Ao mostrar figuras de destaque do universo LGBT brasileiro como Márcia Pantera e MC Linn da Quebrada, o filme expande ainda mais o seu universo, primeiro localizando estas como pessoas reais, que possuem desejos, ambições, dores, posicionamentos fora do palco. E também brilham, possuem presença, criatividade, e enorme força cênica quando dão vida às suas personagens. No fundo, são artistas interessantes que possuem uma voz que merece ser ouvida, e isso já deveria ser motivo de sobra para que elas não vivam na marginalidade.

Outro destaque é como Caetano nos apresenta a São Paulo. Não é a cidade que se vê normalmente. É um lugar superpopuloso, acinzentado, pobre, feio. É o jeito que a cidade se parece pra muita gente, a cidade real. E isso parece valorizar ainda mais a força dessas figuras, que mesmo num local tão árido conseguem ter motivos para seguir, sem lamentar. Claro, ainda há espaço para beleza, como na impactante sequência da multidão subindo a rua, todos com guarda-chuvas, mas tal beleza parece muito mais externa à cidade que o contrário.

Muito mais que um bom filme, Corpo Elétrico é uma obra que, acredito, indica novos caminhos para o cinema brasileiro. Um cinema com um olhar mais voltado para as questões nossas, praqueles que insistentemente são subjugados por um sistema opressor, mas que ainda assim possuem resiliência para se manter vivos, incomodando. Um cinema político de qualidade, consciente do papel que cumpre, da luta que representa, capaz de oferecer outras ferramentas pra combater a opressão que parece não parar de crescer por aqui, e que todos parecem entorpecidos demais para impedir.