Numa cena de Crepúsculo dos Deuses, o protagonista do filme, o roteirista de cinema Joe Gillis, observa a propriedade de uma estrela da época do cinema mudo, agora esquecida, e se detém na piscina da casa. É noite e a cena tem um ar sombrio, que fica ainda pior quando Gillis percebe os ratos correndo dentro da piscina vazia. Esse momento é indicativo do quão sombrio o filme é, e como ele permanece ainda hoje como um dos mais incisivos e corajosos retratos dos bastidores de Hollywood.

Para milhões de espectadores no mundo todo, Hollywood é um lugar mágico. É a “Meca” do cinema, o lugar onde aspirantes a astros, diretores e roteiristas disputam seu lugar ao sol e sua chance da fama, mas poucos conseguem. No entanto, como todas as coisas criadas pelo ser humano, Hollywood possui também um lado negro, e a realidade mostrada em Crepúsculo dos Deuses não deve ter mudado tanto, apesar das décadas.

O filme saiu da mente de Billy Wilder, um dos diretores mais interessantes da história do cinema, especialmente devido à sua bipolaridade – dependendo do filme, Wilder podia ser um romântico sensato ou um cínico inveterado, podia nos fazer rir ou ficar assustados. Crepúsculo dos Deuses se encaixa na fase cínica do cineasta. Wilder, afinal, conhecia os dois lados da experiência humana, o belo e o terrível. Austríaco e judeu, ele emigrou primeiro para a França, depois para os Estados Unidos, para escapar da perseguição nazista na Europa. Hollywood, para o estrangeiro Wilder e para o público, era a “máquina de sonhos”, mas quase ninguém via as engrenagens dessa máquina ou como ela era (e ainda é) capaz de esmagar as pessoas que a fazem funcionar. Até que ele as mostrou.

Entretanto, mesmo com o diretor sendo bipolar, havia uma coisa que os filmes de Billy Wilder sempre tinham: um humor tão refinado quanto divertido. O roteiro de Crepúsculo dos Deuses, escrito por Wilder e seus parceiros Charles Brackett e I.A.L. Diamond, começa com a narração de um personagem já morto! O pobre Joe Gillis (interpretado com sagacidade por William Holden) é encontrado morto dentro da já mencionada piscina, agora cheia de água e bonita – a tomada que o mostra boiando na água, filmado de baixo para cima, com os fotógrafos observando-o, é uma das mais icônicas do cinema.

É então que o morto começa a nos contar sua história, levando-nos de volta à época em que a piscina estava sem água e cheia de ratos. Gillis era um roteirista de Hollywood – e Wilder faz questão de nos mostrar a posição baixa deles na hierarquia de poder do cinema da época. Fugindo de credores, ele acaba se escondendo na mansão pertencente à estrela do cinema mudo Norma Desmond (Gloria Swanson, na atuação da sua vida). Gillis queria apenas se esconder por algumas horas, mas vai acabar passando meses na companhia de Norma, reescrevendo o roteiro maluco dela que, segundo a própria, vai colocá-la de volta no topo do cinema. Ao longo da história, Gillis e Norma desenvolvem um estranho relacionamento. Ele também conhece Max (Eric Von Stroheim), o bizarro mordomo e motorista dela, e redescobre uma chance de salvação ao trabalhar num roteiro original com a adorável Betty Schaefer (Nancy Olson).

No fundo, é uma história sobre como é fácil para as pessoas se venderem. Em Hollywood esse processo é mais intenso e também meio dissimulado, mas é essa ideia que dá ao filme a sua universalidade, por assim dizer. É fácil ser corrompido e desistir dos seus ideais – é o que acontece com Gillis, e sua corrupção é perfeitamente mostrada na cena em que Norma está comprando roupas para ele. O vendedor, de forma reptícia, lhe pergunta: “Se a madame está pagando, por que não levar a peça mais cara?”.

Em essência Gillis se transforma de roteirista a “garoto de programa” de Norma Desmond. O filme não mostra isso explicitamente – afinal, certos tópicos, especialmente os sexuais, não podiam ser discutidos abertamente na Hollywood da época – mas Billy Wilder deixa isso claro através das atuações e dos aspectos visuais do filme. Afinal, a mansão de Norma, antes decrépita, ao longo do filme se enche de vida e fica um pouco mais iluminada quando Gillis passa a morar lá.

No aspecto visual, Crepúsculo dos Deuses também é interessante por unir realismo e estilização, ao combinar o mundo real onde vive Joe Gillis com a loucura do universo de Norma Desmond. O filme se encaixa na estética do filme noir, e o diretor de fotografia John F. Seitz explora bastante o contraste entre luz e sombra – vale a pena lembrar, Billy Wilder foi um dos cineastas que definiu o estilo noir com sua outra obra-prima, Pacto de Sangue (1944). E a direção de arte aproxima a mansão de Norma do castelo do Drácula: com uma ambientação sombria e praticamente gótica, a casa da estrela do cinema é o cenário perfeito para cenas bizarras como a do velório do macaco de estimação, ou o momento em que a orquestra não para de tocar nem mesmo quando algo errado acontece com a anfitriã da festa.

Se Norma é uma vampira (emocional, pelo menos), Max é seu servo. Von Stroheim, com seu sotaque e sua postura rígida, parece um morto-vivo e sua escalação ajuda a destruir a fronteira entre ficção e realidade no filme, e essa certamente era a intenção de Wilder. Explica-se: Stroheim foi um dos grandes diretores da década de 1920. Inclusive, já havia até dirigido Gloria Swanson na sua juventude, e ela também foi famosa na mesma época. Quando esses dois atores fazem seus papeis, eles realmente sabem como seus personagens se sentem, o que torna suas interpretações mais pungentes. Para tornar as coisas ainda mais “metalinguísticas”, na cena em Norma e Gillis assistem a um velho filme dela, Wilder utiliza imagens do filme no qual Stroheim dirigiu Swanson… Outros nomes do cinema mudo também aparecem em pontas tristes, como o comediante Buster Keaton; e no filme ainda são vistos a maior colunista/fofoqueira da época, Hedda Hopper, e o diretor Cecil B. De Mille.

De Mille aparece no momento mais comovente do filme, quando Norma, Max e Gillis visitam os estúdios Paramount e a velha estrela se encontra com o famoso diretor de Os Dez Mandamentos (1956). Naquela cena, a ilusão e dura realidade do cinema ficam claras: De Mille nos lembra de que pessoas como Norma nem sempre foram do jeito que são agora, e sua frase “uma dúzia de agentes de imprensa podem fazer coisas terríveis com o espírito humano” é bem triste e verdadeira. Porém, essa mesma frase é dita por um sujeito que dirigia seus filmes como um general, usando botas de cano longo! Essa é a essência da ideia de Wilder sobre o filme e sobre Hollywood: é o lugar onde convivem, lado a lado, o sublime e o ridículo, a realidade e a ilusão (e a auto-ilusão).

Wilder mostra isso com todo o cinismo e humor a que tem direito. Esse humor, no entanto, não é de gargalhada como nas comédias famosas do diretor. É um sarcasmo, de risos nervosos, mas é impossível não rir com algumas tiradas de Gillis, especialmente na sua narração. Afinal, Crepúsculo dos Deuses tem alguns dos melhores diálogos do cinema. O cinismo não poupa nem o público – um dos mais engraçados momentos é quando Gillis diz que “o público não sabe que alguém se senta e escreve os filmes, acham que os atores inventam tudo na hora”. E claro, não se pode esquecer uma das mais famosas falas de todos os tempos. Quando Gillis diz que Norma era uma grande atriz, ela responde: “Eu ainda sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos”, e essa frase a define perfeitamente.

Para um filme tão cínico, porém, é importante notar que a “luz de esperança” da história é valorizada por Billy Wilder. Nancy se apaixona por Gillis e ele por ela, e a redenção dele aos olhos do espectador vem quando ela a “salva”, de certa forma, ao abandoná-la. São pessoas como ela que fazem os filmes, são suas ideias e seu entusiasmo que leva o público a sonhar. Em meio àquela decadência, ora engraçada ora sombria, ela sobrevive enquanto a loucura domina o final do filme. Na luta entre realidade e fantasia, a segunda muitas vezes vence, ainda mais em Hollywood, mas Wilder parece ter feito Crepúsculo dos Deuses para nunca deixar o público esquecer. Não esquecer que embora lá seja um lugar mágico, onde coisas belas são feitas por pessoas como Nancy, lá também é um lugar macabro, com vampiros e casas mal assombradas de verdade, e ratos nas piscinas.

* Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.