Um temporal atinge Paris enquanto acompanhamos, em câmera subjetiva, as portas do teatro se abrindo uma após a outra, logo no início de A Pele de Vênus. A tempestade, não por acaso, anuncia a chegada de Vanda Jourdain, a protagonista vivida por Emmanuelle Seigner, que, assim como a chuva, chega de maneira intempestiva e pronta para mudar os planos do diretor Thomas Novacheck (Mathieu Amalric).

O duo de protagonistas e o cenário do teatro é tudo que o cineasta Roman Polanski precisa para fazer de A Pele de Vênus um filme de diversas camadas, que vai de uma aparente e inofensiva comédia a um jogo de status e poder. O longa, que enfim chega aos cinemas do Brasil – e iria chegar a Manaus, mas foi alarme falso –, é baseado numa peça de David Ives (com quem Polanski também assina o roteiro), que, por sua vez, adapta o romance A Vênus das Peles, do austríaco Leopold von Sacher-Masoch.

A história gira apenas em torno dos dois personagens, e o embate que se segue entre eles. Quando Vanda entra no teatro, Thomas Novacheck está prestes a ir para casa, depois de um dia exaustivo de testes com aspirantes ao papel principal de sua peça, inspirada no livro de Sacher-Masoch. Mesmo parecendo uma atriz destrambelhada e pouco promissora logo de cara, Vanda consegue convencer Novacheck a fazer o teste com ela, assumindo ele mesmo as réplicas do outro personagem da peça, Séverin – e, quando ela começa a atuar, ele percebe de imediato que essa é a sua protagonista.

Emmanuelle Seigner brinca à vontade com sua personagem: com a mesma dose de sensualidade de Lua de Fel (1992), também do diretor e marido Polanski, mas com uma atuação mais madura, Seigner promove uma dinâmica cheia de flertes e demonstrações de poder com Novacheck. Amalric, por sua vez, repete com ela a parceria de O Escafandro e a Borboleta (2007), e dá ao filme um novo subtexto até por conta de sua semelhança física com o próprio Polanski mais jovem – assim, é como acompanhar o casal discutindo em cena, o que acrescenta uma camada divertida e meio desconfortante à obra.

O filme todo, aliás, acaba se valendo do jogo entre os dois personagens também para discutir relações de gênero. Se, à primeira vista, Vanda é uma atriz inofensiva e pouco culta, à medida que o longa avança a personagem cresce e começa a questionar o material da própria peça, apontando-a como uma pornografia degradante e machista. Afinal, tanto a peça de Novacheck quanto o livro de Sacher-Mosach – cujo nome originou o termo masoquismo – tratam da relação entre Séverin e Wanda (sim, o mesmo nome), em que o rapaz a convence a fazê-lo de escravo e maltratá-lo. No fim das contas, porém, tudo se resume à mulher submissa, e é nesse ponto que a Vanda atriz vai inverter os papéis entre os personagens – e o figurino à lá dominatrix só ajuda.

Ajudado pelas atuações de sua dupla dinâmica, Polanski tem completo controle da mise-en-scène, e o jogo de luzes e posições dos personagens ilustram seus respectivos status na brincadeira de gato e rato que se desvela. Polanski sublinha os diálogos afiados com a câmera, e impede que o longa soe simplesmente como um teatro filmado. Já a trilha sonora de Alexandre Desplat ajuda a manter o tom farsesco da situação em que Novacheck e Vanda se encontram, sempre com um toque de humor à disposição.

Provocador, cínico e divertido, A Pele de Vênus se qualifica como mais um belo exemplar da carreira de Polanski e, além disso, se mostra um verdadeiro manifesto antipatriarcado, fazendo valer sua citação final: “E o Senhor todo-poderoso o golpeou e o colocou nas mãos de uma mulher”. Seria Emmanuelle Seigner a Vênus em pessoa?