Formatos tradicionais, com aqueles três manjados atos bem fechados e personagens de personalidade e arcos dramáticos claramente demarcados, não são garantia de geração de identificação entre público e um filme. Quando os filmes partem para propostas menos convencionais então, aí é que não existe garantia de nada; por outro lado, esse desafio pode potencializar o alargamento do olhar crítico dos que os consomem.

Nesse sentido, “A terra negra dos Kawa” (idem, 2018) representa algo de muito emblemático para o cinema amazonense em longa-metragem: nega códigos de fácil leitura e abraça o absurdo de sua interessante premissa. Também abraça referências ricas e diversas, que levam cinéfilos a relembrarem algo de uma ficção científica existencialista como “Stalker” (idem, Andrei Tarkovsky, 1979), a espiritualidade de um “Cemitério do Esplendor” (Rak ti Khon Kaen, Apichatpong Weerasethakul, 2015) ou a precariedade a serviço da criatividade de “Branco Sai, Preto Fica” (Adirley Queirós, 2014).

O resultado final, porém, não alcança a contundência de seus “filmes-irmãos”. A premissa de “A Terra negra dos Kawa” é até interessante: um pequeno grupo da etnia fictícia do título do longa vive numa área na qual a terra, além de altamente fértil, apresenta propriedades afrodisíacas, alucinógenas (encaradas por eles como que ligada a uma experiência mais espiritual que puramente recreativa) e que também funciona como fonte de energia natural.

A relação dos personagens com essa terra é o fio condutor do filme. Enquanto que os mais velhos, interpretados pelos atores indígenas Severiano Kedassare e Emerlinda Yepario, têm uma relação orgânica com ela, os mais jovens (Kay Sara e Anderson Kary Báya) apresentam interesses diversos: a moça divide a terra com os pesquisadores com quem se envolve, enquanto que o rapaz tenta usar a energia do solo para criar uma máquina capaz de se comunicar com seus “parentes” de outras galáxias, numa clara relação com as cosmologias comuns à várias etnias indígenas brasileiras reais. Orbitam ao redor desse núcleo os já citados pesquisadores, interpretados por Mariana Lima, Felipe Rocha e Marat Descartes, cada um com interesses diversos para a exploração do solo dos Kawa.

Sobre prós e contras

Dois pontos se destacam a partir do universo proposto pelo diretor Sérgio Andrade, que também assina o roteiro. O primeiro deles é a experiência sensória por ele dada ao mostrar uma relação literal com a terra: os personagens cobrem o corpo, comem, fumam misturada num baseado, ligam aparelhos eletrônicos e sonham com o solo. Ao longo dos 99 minutos de filme, porém, a carga de impacto dessas imagens diminuiu substancialmente, dada a repetição de algo que, ao espectador, já estava claro com poucos minutos de filme, que é a atração sobrenatural que essa terra negra exerce sobre as pessoas.

Por mais criativa que seja a ideia, as redundâncias do roteiro tornam o filme cansativo. A montagem de Marina Meliande e a fotografia de Yure César acabam sendo um tanto paliativas nesse sentido, uma vez que ambos tentam, ao máximo, trazer soluções inusitadas para aliviar a falta de maiores propostas do que fazer com aquele mundo tão próprio do longa. Sobram belas imagens, como a de Kay Sara encarando a câmera (e, por conseguinte, o espectador) ao despertar de uma “brincadeira” na qual Anderson Kary Báya, entoando uma canção na língua tukana, cobre todo o seu rosto de terra negra a ponto de quase sufocá-la. Outra bela imagem é a de Kay Sara, Mariana Lima e Felipe Rocha deitados num flutuante (sobre o trio, falaremos a partir de outra perspectiva mais tarde).

O outro ponto que se destaca em “A terra negra dos Kawa” é a preparação do elenco indígena, realizada por Pedro Freire. Quando o longa foca nesse grupo, o filme cresce, dada a naturalidade que traspassa toda a atuação de Kedassare, Yepario, Báya e, especialmente, Sara, que, sem dúvida, tem a personagem de maior complexidade na trama. É justamente isso que torna gritante o contraste com o resto do elenco, o qual soa bastante artificial, sem ser perceptível uma intencionalidade nisso a partir da direção dos atores. O momento em que Descartes solta uma crítica inócua e totalmente descontextualizada sobre o governo, por exemplo, é um tanto risível. Para além da atuação, o próprio desenvolvimento desses personagens flerta com o lacunar, mas acerta apenas em um roteiro mal desenvolvido dentro desses parâmetros.

Alguns outros detalhes geram desconforto, dependendo do ponto de partida para a leitura da obra fílmica. A inserção de haitianos falando em francês em uma cena que se passa no território do quarteto Kawa é uma delas. O personagem em questão explica, de maneira absurdamente didática, sobre o drama desses imigrantes, engatando o monólogo a uma história pessoal que o ligaria à terra negra em questão. Porém, nada mais sobre isso é reverberado no filme, a exemplo da crítica política supracitada. O peso e complexidade dos dois tópicos se diluem com a forma rasa com que são colocados.

Em se tratando de representatividade, também é problemática a tensão sexual que surge como possibilidade de leitura do filme na interação entre Sara, Lima e Rocha. A bela imagem dos três chapados no flutuante, então, tem esse caráter dúbio: gera lindos frames, mas traz um ar de objetificação da mulher indígena. Vale frisar que a Kawa desrespeita e entrega aos brancos a terra negra de bom grado em várias sequências do filme, e o fato dela ser usada de maneira recreativa pelos pesquisadores (aliada às atuações regulares destes) torna tudo mais incômodo. Obviamente, não se espera aqui a apresentação de uma personagem Mary Sue para Kay Sara, mas dada a pouca presença de indígenas no cinema como protagonistas de suas próprias histórias, valeria um esforço extra na representação das contradições dessa personagem em especial, na humilde opinião desta que vos escreve.

Entre os prós e os contras, é inegável a importância de Sérgio Andrade e sua filmografia para o cinema amazonense. É importante, porém, ir além da celebração da existência desse cinema e lançar um olhar que permita trazer alguma contribuição para uma maior contundência à produção em termos de conteúdo. É uma tarefa que o próprio diretor parece compreender, posto que, com “A terra negra dos Kawa”, ele busca desafiar um pouco mais a si próprio no uso da linguagem fílmica em relação a suas obras anteriores.