Uma das características mais marcantes de Woody Allen é a sua disciplina. Desde 1982, o cineasta lança pelo menos um filme por ano. É claro que a partir disso seria impossível o diretor emplacar uma obra-prima ano após ano, e creio que a sua intenção passa distante disso. Ele parece sempre interessado em arriscar em alguma característica nova a cada filme, o que pode se mostrar como um novo elemento com fôlego e potência para novos 90 minutos interessantes, ou experiências comportadas que soam pálidas e desgastadas, apesar da inegável capacidade do cineasta.

Depois do ótimo Blue Jasmine (2013), Allen apresentou os problemáticos Magia ao Luar (2014) e O Homem Irracional (2015), trabalhos que demonstravam pouco apuro no roteiro, com diálogos excessivamente expositivos e convenientes às coincidências que se seguiam uma após a outra, demonstrando uma função de “piloto automático”, na qual acredito que o primeiro tratamento do roteiro foi o que foi filmado, seguido de um processo de gravação em que facilidades foram permitidas em detrimento de maior rigor, terminando numa montagem pouco inventiva, muito mais focada para que o ritmo fosse agradável, do que para que tivesse a densidade necessária.

Portanto é com alegria, e não com surpresa, que acredito que Allen voltou a sua boa forma ao entregar Café Society, seu novo trabalho.

O jovem nova-iorquino Bobby (Jesse Eisenberg) vai à Hollywood, pois não quer permanecer atrelado ao seu trabalho com o pai que não o oferece grandes perspectivas. Auxiliado pelo seu tio Phil (Steve Carell), um poderoso agente de grandes estrelas de cinema, ele inicia a sua jornada na nova cidade, tendo a companhia de Vonnie (Kristen Stewart), secretária do seu chefe. Bobby rapidamente se apaixona por Vonnie, mas ela esconde um segredo que vai modificar a vida do rapaz.

Sem dúvida esta trama, a do garoto jovem ingênuo que muda de cidade e se apaixona por uma mulher impossível, não reserva surpresas extraordinárias. Mas o ponto aqui é como Allen desenvolve esse enredo, com uma vitalidade e competência técnica digna dos seus melhores momentos. Aparentemente temos um filme que teve mais apuro nas suas etapas, com mais atenção às sutilezas, e que entrega menos o jogo.

Há tempos o cineasta não concatenava de maneira tão interessante drama e comédia num só filme. Café Society é uma comédia dramática da melhor qualidade, aquela em que a comédia não suaviza nem dilui o peso do drama, e vice-versa.

Nos divertimos com sequências muito bem elaboradas, como na primeira transa de Bobby em Hollywood, e suas idas e vindas graças a insegura garota de programa novata, e com as sequências envolvendo a família judia de Bobby em Nova York (com destaque para a ótima piada: além de assassino, cristão?), mas ao mesmo tempo temos a real dimensão do conflito que envolve o rapaz, e de como é complexa a escolha de uma pessoa dividida por dois amores diferentes, que representam escolhas excludentes.

A narração em off, problema sério nos trabalhos anteriores mais recentes do realizador, que falava aquilo que já podíamos compreender através das imagens, aqui surge de maneira mais orgânica, adicionando informações de maneira elegante, funcionando como um adendo bem vindo, narrada de maneira econômica pelo próprio Allen.

O elenco está em uma forma muito boa, e garante profundidade àqueles personagens, mas sem dúvida nenhuma o maior destaque é Jesse Eisenberg, que nunca esteve tão bem desde o seu trabalho em A Rede Social (2010). Apresentando Bobby como um rapaz ingênuo e impressionável apesar de determinado, o jovem do Bronx vai se moldando com as pancadas da vida e ao término da sua jornada pouco lembra aquele rapaz com poucas perspectivas para o futuro. Torna-se seguro, confiante, bem sucedido. Mas tudo isso ainda esconde por trás um homem preso a um amor do passado que sempre se questiona sobre os rumos que tomou. Um personagem complexo e muito bem desenvolvido pelo ator.

E soma-se a isso o primor técnico de Café Society. Financiado pela Amazon, fica evidente que este filme possui um orçamento mais robusto que os filmes anteriores de Allen, o que proporciona outro nível de produção. A fotografia assinada pelo veterano Vittorio Storaro apresenta Hollywood sempre com cores quentes, enquanto que o Bronx do protagonista é dividido entre o azul e o cinza, ilustrando o deslumbramento de Bobby com aquele lugar onde as estrelas de cinema moram comparado à sua cidade natal. Reparem como o diretor de fotografia ilumina Vonnie na sua primeira entrada, como se ela fosse uma fonte de luz solar na vida daquele rapaz. Além disso, a direção de arte de Santo Loquasto recria com elogiável apuro a Hollywood e Nova York dos anos 30, com a suntuosidade, luxo e glamour da primeira, e as ruas estreitas, e casas menores e mais modestas da segunda.

Mas esses fatores vêm para trazer um olhar dúbio sobre tais locais. Ao mesmo tempo em que Hollywood surge sempre muito bem iluminada e ensolarada, com suas mansões, carros de luxo, roupas de gala, e estrelas de cinema, é também um lugar mesquinho, desinteressante, superficial, em que fulana fala que sicrana não vai conseguir o papel no filme mesmo que deite com quantos diretores forem.

Tal dualidade também é trazida em outros aspectos do filme, em que a mesma lógica pode ser aplicada para o Café Society do título, em que amigos de Hitler são saudados com elegância e simpatia confraternizando com a alta sociedade nova-iorquina, e principalmente com o rumo que a vida de Bobby e Vonnie tomou.

Em um determinado momento do filme um personagem fala para o outro que “sonhos são sonhos”. Café Society é sobre isso. Sobre como idealizamos alguma coisa em nossas vidas, nos frustramos, nos esforçamos para encontrar outro caminho, finalmente conseguimos o que queremos, mas sempre vem essa coisa ficar nos fazendo pensar como estaríamos se a vida tivesse oferecido outro caminho.

E como mostra a bela sequência final, muitas vezes temos o que precisamos ao nosso redor, mas a cabeça insiste em estar presa em outro local.