Após a cinebiografia de Edir Macedo se transformar na maior bilheteria de um filme brasileiro, muitas portas se abriram para a representação de personalidades religiosas no cinema nacional. Desta vez, a história de Allan Kardec é a aposta das cinebiografias e, apesar de ser dirigido e roteirizado por Wagner Assis (“Nosso Lar”), veterano da temática espírita, o filme conta com uma trama superficial e mal organizada, longe da densidade e dimensão sobre os estudos do protagonista. Isso leva ao pecado-mor do projeto: não apresentar Kardec e a importância de seu legado.

A história começa na França nos primeiros anos de estudo de Hippolyte Léon Denizard Rivail sobre o espiritismo. Interpretado por Leonardo Medeiros, acompanhamos um professor casado que participa ativamente de sociedades acadêmicas de cientistas e estudiosos, se apresentando como um homem bastante cético em relação à existência de espíritos. Com influências de amigos próximos, ele se propõe a investigar os acontecimentos sobrenaturais da época e estabelecer um estudo sobre o assunto, dando início à doutrina espírita.

UM ROTEIRO DIFÍCIL DE ENTENDER

A proposta de “Kardec”, assim como qualquer cinebiografia, seja de viés religioso ou não, tem boas intenções ao apresentar a trajetória de uma importante personalidade. Neste caso, o principal problema é que o protagonista não consegue sustentar a narrativa sozinho, apelando para uma jornada do herói forçada ao extremo. Afinal, Kardec é uma personalidade importante, a qual enfrentou muita resistência para publicar suas obras e realizar estudos no espiritismo.

Logo, isso não é suficiente para retratar sua história? Aparentemente, não. O roteiro cria, insistentemente, inimigos pessoais para o personagem, seja no plano terrestre ou espírita, inserindo diversas figuras superficiais para colaborar com uma história que não tem sequer a oportunidade de desenvolver tantas subtramas.

O filme até dá sinais de um enfrentamento entre Kardec e a Igreja Católica, afinal são duas doutrinas bem diferentes em uma época em que o catolicismo dominava a Europa e outras regiões do planeta. Porém, ao invés de deixar no campo ideológico, o roteiro insiste em individualizar em um padre como inimigo direto do protagonista.

O próprio espiritismo é tratado de forma muito superficial no longa. As sequências nas quais a história prova para Kardec e para o público que espíritos existem e se comunicam conosco são repletas de atuações exageradas e caricatas. Infelizmente, o que deveria ser um momento especial chega a beirar o cômico.

Para fechar esta sucessão de erros, a montagem do filme não ajuda em nada seu desenvolvimento. Muitas cenas são curtas e precisam ser encaixadas na narrativa a qualquer custo, resultando em sequências que não fazem muito sentido e, aparentemente, foram pensadas como momentos individuais e não como parte de um longa-metragem. Da mesma forma, “Kardec” tenta, sem sucesso, abraçar temáticas mais emergentes e atuais como o estudo de religiões em escolas e a intolerância religiosa. Apesar de discursos relevantes, a trama não consegue desenvolver essas ideias satisfatoriamente.

O QUE SE SALVA

“Kardec”, entretanto, não é um desastre total, principalmente, por não querer vender o espiritismo como uma doutrina suprema. A trama constrói isto desde a descrença inicial de Kardec até os momentos de perseguição que encerram a história. Apesar do protagonista virar um quase herói, em nenhum momento, ele impõe seu pensamento sobre outras pessoas ou afirma possuir a verdade absoluta. Pelo contrário, o longa prefere se voltar ao início dos estudos sobre o espiritismo e como este legado influenciou diversas áreas do conhecimento, sem se restringir apenas ao patamar religioso.

Também destacam-se todo o design de produção, capazes de chegar perto de uma ambientação na França do século 19, os figurinos ótimos capazes de ajudar na ambientação do público, além da caracterização dos personagens, principalmente, de Leonardo Medeiros como Kardec.

Mesmo com tantos pontos negativos, se, ao menos, o filme conseguisse demonstrar a dimensão dos estudos de Kardec e sua importância social, teríamos uma obra bem mais forte. Ao invés disso, o espectador se depara com uma história superficial a qual tenta a todo custo apresentar novos personagens e situações quando deveria voltar-se para os conflitos pessoais de Allan Kardec e seus primeiros anos de pesquisa na área espírita. Espero que, pelo menos, para os adeptos da religião, o longa tenha servido como uma homenagem, já que, cinematograficamente falando, ele possui pouco a se aproveitar.