Vamos clarificar algo logo de antemão: se Roger Ebert não existisse, talvez eu não estivesse escrevendo esse texto. Se estivesse, decididamente não seria dessa forma. Cinefilia é algo que me acompanha desde meu primeiro contato com a Sétima Arte, mas o código que achei para descrever e debater o cinema tem muito do crítico americano, falecido em 2013.

Life Itself – A Vida de Roger Ebert” (2014), como o nome em português indica, remonta a infância, o início da carreira, os altos e baixos, e a derradeira batalha contra o câncer do estadunidense, como todo documentário biográfico faria. Com uma apresentação clean e polida, não há por parte dos cineastas uma tentativa de inovar nesse departamento.

O filme, no entanto, compensa no personagem: Ebert foi uma figura que se tornou mitológica ainda vivo e encarnou figuras como o gordinho inadequado da faculdade, o editor de jornal sério e irritadiço, o amigo das escapadas de bar, o crítico renomado e premiado, o astro nacional de televisão.

Entretanto, o longa vai além quando se debruça sobre os personagens menos lisonjeiros de Ebert, como o alcóolatra autodestrutivo, o homem mimado e de personalidade explosiva e a inicial relação tóxica que tinha com seu rival na mídia impressa (mas companheiro de televisão) Gene Siskel. Como sumarizado por um de seus colegas de jornal: “Roger era um cara legal, mas não tão legal assim”.

Que tudo isso tenha sido feito com o aval expresso do próprio Roger e sua mulher, Chaz, é digno de nota, algo tornado explícito pelo crítico ao manifestar para o diretor Steve James, via texto, o desejo de incluir as filmagens da descoberta de uma complicação no seu quadro clínico. “Seria uma grande falha ter um documentário que não contém toda a realidade. Eu não gostaria de ser associado [a ele]. Este filme não é apenas seu”, asseverou. A comando, o cineasta não nos exime de ver o crítico se alimentando através de um tubo ou tendo um ataque de birra diante da esposa e de uma enfermeira – um dos poucos lados de Ebert que não aparecia em suas resenhas.

As inclusões de texto na tela são dinâmicas e inventivas, remontando uma versão menos hiperativa da técnica utilizada na série britânica Sherlock, e permitem ao crítico, que se comunicou largamente via texto em seus últimos anos de vida por conta de uma cirurgia que lhe retirou a mandíbula, ter uma voz ativa no filme.

E é essa voz que mais emociona e dá a Life Itself um senso de “gravitas” e transcendência. A voz do homem que tornou a crítica de filmes parte da cultura pop (o Cine Set agradece!), que previu que as vozes diversas da internet seriam essenciais para a compreensão do cinema no futuro (o Cine Set agradece de novo!), que se tornou parte do círculo das estrelas que elogiava, mas não hesitava em criticar negativamente quando achava necessário. Sobre esse último, sua relação com o cineasta Martin Scorsese ilustra bem esse seu lado e a adoração que o diretor alemão Werner Herzog demonstra por Ebert traz lágrimas aos olhos do espectador menos incauto.

Em resumo, é muito complicado para qualquer pessoa que escreve sobre cinema tecer um comentário imparcial sobre Ebert e o crítico seria o primeiro a chamar a atenção para o fato de que não existe algo como um “comentário imparcial”. Ele se colocava nas resenhas de uma forma apaixonada e, quer você considere-o um gênio da forma ou um louco populista, é impossível ficar impassível diante de seus textos.

Desta forma, Life Itself é uma meditação sobre a entrega, a paixão e a inerente subjetividade do cinema, indispensável para quem, como seu personagem, ama a experiência dos filmes e recomendável para qualquer um que se atraia por filmes com histórias de vida interessantes.