Grandes obras de arte têm o poder de atravessar o tempo mantendo o seu discurso e estilo tão potentes quanto na época em que foram lançadas. Casos assim são exemplos da capacidade do artista em observar o seu tempo, o comportamento da sociedade em que vive, e daí tirar material para fazer investigações que confrontam os nossos vícios, as nossas incoerências, imprecisões, injustiças. Quanto mais uma obra permanece com suas provocações fazendo sentido mesmo com o passar dos anos, mais relevante ela se torna, pois fala de temas universais ultrapassando gerações. 

A obra de Luis Buñuel é um desses casos, sem dúvida. 

Por questões de contexto, creio que é importante dizer que esta crítica de “O Anjo Exterminador” é feita no período de quarentena por conta do Covid-19. Quer dizer, em que apenas 48% da população está em quarentena, conforme apontam pesquisas. Há os que precisam trabalhar por conta dos serviços essenciais, e há o restante que não consegue entender a gravidade da situação, ou é mau caráter como é o presidente da República. 

58 anos após o seu lançamento, durante esta terrível pandemia, a força do discurso de “O Anjo Exterminador” faz ainda mais sentido neste momento em que empatia e respeito ao próximo são fatores que podem salvar ou tirar vidas. 

Na trama, o casal Edmundo (Enrique Rambal) e Lucia (Lucy Gallardo) convida um grupo de amigos da alta sociedade para jantar na sua casa após um concerto. Pouco antes da refeição, os empregados, sem nenhuma explicação aparente, decidem abandonar a casa, deixando o serviço para o mordomo. Apesar do desfalque, tudo ocorre como planejado, todos jantam, conversam, se divertem, passam um bom momento juntos. Porém, depois do jantar ninguém consegue ir embora da casa. Não há nenhuma barreira que os impeça, mas sabe deus porque eles não conseguem deixar a sala da casa, e ficam ali confinados. Vão passando-se horas, dias, e a relação cordial e afetuosa entre aquelas pessoas torna-se impaciente, feroz, até chegar na violência e agressividade mais cruas. 

INCOERÊNCIAS DA ELITE

 

É particularmente interessante a utilização que Buñuel faz do espaço cênico, deixando claro que não há nada no caminho que impeça os personagens de saírem dali. Desta forma a direção brinca com a imaginação do público, gerando um estranhamento no início, mas que depois é substituído pela compreensão de que o fato de não sabermos a razão daquilo não nos impede de embarcar no que ele está querendo dizer. Aliás, pelo contrário. Uma vez que o jogo proposto está estabelecido, o diretor vai direto ao ponto, sem se importar com os signos que não fazem sentido à primeira vista (ou mesmo depois de várias visitas, o mistério é valorizado), se atendo ao discurso em lugar preponderante à forma. 

Notabilizado como um dos maiores expoentes do surrealismo no cinema, Buñuel foi um cineasta que se dedicou a uma investigação do comportamento humano, mas preferencialmente explorando o irracional, o subconsciente, interessado pelos comportamentos não convencionais do ser humano, o mistério que ronda as nossas personalidades. 

A estrutura do filme é montada em cima de cenas curtas, situações breves uma após a outra em que vemos falas ou ações daqueles personagens reservadamente. Essa horizontalidade faz com que “O Anjo Exterminador” não apresente um único protagonista a ser seguido. Não há personagens principais ou coadjuvantes, mas um grupo. Cada um com particularidades muito bem definidas, mas todos integrantes de um grupo, a burguesia. 

Apresentar as incoerências desta classe social foi uma das características mais notáveis na carreira de Buñuel, e que em “O Anjo Exterminador” tem um dispositivo simples como ponto de partida, e que potencializa a discussão de muitos assuntos que interessavam ao diretor. 

O universo visto no filme é apocalíptico, as situações são originadas por acontecimentos totalmente não naturalistas, nada se justifica de maneira plausível dentro daquela casa. Mas o comportamento humano é perfeitamente reconhecível e infelizmente apresenta uma coerência mórbida e violenta: uma vez que pessoas são colocadas em risco, seus instintos primitivos vêm à tona trazendo suas respostas mais individualistas, cruéis, hipócritas às situações que se apresentam. A educação na forma de falar, tratar, de ser gentil com o seu semelhante é colocada de lado num curtíssimo espaço de tempo, como se tudo isso fosse um fardo que, uma vez que as relações de aparência são deixadas de lado, é difícil de carregar, que só se carrega pelas convenções, e sem eles se é mais verdadeiro e direto ao ponto para ferir o outro. 

COMPAIXÃO SELETIVA

 

Mas isso vale para qualquer classe social, você pode dizer, não apenas a burguesia. Realmente. O próprio Buñuel disse em entrevistas que se em vez de pessoas da alta sociedade fossem camponeses confinados, o resultado seria semelhante. Mas creio que aqui ele se referia mais a questão de uma não solução pro enigma que ele mesmo criou no filme. A questão moral imposta por ele dentro deste “experimento cênico” não tem respostas, se fecha no que cada uma acessar dentro da obra. 

O fato de ser a burguesia a classe social exposta traz comentários que tornam esse experimento muito mais controverso e instigante. Há uma cena que exemplifica bem isso. Quando o clima ainda era amistoso, e eles ainda eram pessoas elogiáveis, amigos de maçonaria, que tinham enorme consideração pelo outro, e blá blá blá, um grupo de três mulheres se forma e uma delas diz, com um sorriso nos lábios, que estava em um trem que descarrilhou, e que toda a terceira classe fora esmagada e morreu. Ela diz que deve ser insensível, pois aquilo não a sensibilizou. Ela é então interpelada pela amiga dizendo que não, pois ela desmaiou quando viu o corpo do falecido príncipe Lurca. Aí temos uma sequência de diálogos inesquecível: 

– Não dá pra comparar. Como ficar indiferente perante a majestosidade daquele admirável príncipe? 

A terceira mulher arremata, concordando com a primeira: 

– Acho que as pessoas do povo, de baixa classe, são menos sensíveis à dor. Já viram um touro ferido? Nenhuma emoção. 

Alguma semelhança com um pensamento recorrente em 2020 de que quem vai morrer de Covid-19 é só gente velha e doente, que já morreria de qualquer forma? 

A elite, os 1% da população citados por Buñuel, só tem compaixão perante os seus iguais. Para os demais… bom, os demais estão bem do jeito que estão, não? Pelo menos é o que parece olhando à distância. 

Há mais informações cifradas dentro de “O Anjo Exterminador”, como as ovelhas, o urso, a mão que circula pela casa, a sequência final envolvendo a igreja e a polícia. Elementos que compõem um olhar muito atento sobre as formalidades das relações entre as pessoas, e o que ela é capaz de esconder por debaixo desse fino véu. Nem o próprio Buñuel sabia ao certo o que cada um desses elementos simboliza, pois pra ele o que interessava era o mistério, o que não tinha explicação, mas que pela presença em cena, em meio ao contexto, cumpria papel no todo. 

Pelo contexto que estamos passando, “O Anjo Exterminador” foi revitalizado para as novas gerações. É um filme novo, nunca deixou de ser. E enquanto as classes mais ricas permanecerem com tanto orgulho de demonstrar a sua paixão pela falta de empatia ao outro, esse filme permanecerá sendo necessário.

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