Esse ano, o cinema (o norte-americano, em particular) viu dois filmes sobre o universo e a luta trans seguirem caminhos distintos. Enquanto o problemático “A Garota Dinamarquesa” driblou as críticas negativas e conseguiu um esperado lugarzinho no Oscar, um outro filme mostrou de forma eficiente a vida de mulheres trans, mas não conseguiu nem 5% da badalação que o primeiro.

O filme a que me refiro, “Tangerine”, é simples: foi filmado com apenas três iPhones 5S. Ainda que não de para esperar dele grandes arroubos técnicos, é injusto dizer que isso prejudica a obra. Muito pelo contrário. O tom documental é importante para que a história nos toque justamente onde Tom Hooper e seu “A Garota Dinamarquesa” (e, se me permitem dizer, até mesmo Eddie Redmayne) falharam: no valor humano e na identificação com as personagens principais.

O pano de fundo de “Tangerine” é Los Angeles e seu céu laranja de doer (daí o nome do filme). Conhecemos nossa protagonista, Sin-Dee (Kitana ‘Kiki’ Rodriguez) durante um papo verborrágico com a amiga Alexandra (Mya Taylor, sensacional) em um café. O mote da história é justamente essa conversa: ao descobrir que seu namorado está lhe traindo (e com uma mulher cis, ainda por cima), Sin-Dee resolve procurar a amante e tirar satisfações.


A dura dita
vida fácil

Parece uma trama banal, mas não dá para descartar o roteiro de Sean Baker (também o diretor do filme) e Chris Bergoch, que usa a ‘vingança’ de Sin-Dee e os sonhos quebrados de Alexandra para tratar de um assunto maior: o que é ser uma prostituta trans na “cidade grande”.

Por isso, um aspecto bastante criticado no filme muito me agradou: a fotografia. Sim, ela é feia. Sim, ela tem erros grotescos. Mas é justamente essa “falta de capricho” que faz com que o espectador salte para dentro da tela. Afinal, não estamos vendo a Los Angeles das estrelas de cinema, o lugar que os sonhos se realizam: o que acompanhamos nesses 90 minutos de projeção é o lado de cores irregulares, o lado doloroso, o lado que apanha.

Nesse sentido, a montagem confere ao filme um caráter urgente e, em seus tropeços, acerta ao nos mostrar as histórias das suas protagonistas com a mesma intensidade.


“Sem desculpas”

Se eu pudesse definir “Tangerine” em uma palavra, teria que recorrer à língua inglesa e emprestar o “unapologetic” (na tradução livre, sem desculpas). Não há a necessidade de agradar o público, felizmente. E, por isso, o casting de duas atrizes trans foi certeiro.

Em um filme tao visceral, ter Kiki Rodriguez e Mya Taylor (premiada com justiça no Independent Spirit Awards) foi fundamental. Impressionante como as duas se complementam – e aí volto à cena do café que abre o filme para pontuar a energia e, ao mesmo tempo, as nuances da performance das duas. Taylor, em especial, é sensibilidade pura e a cena em que sua personagem canta é a maior prova disso. Desafio você a não se emocionar com a interpretação sem jeito de Alexandra para ‘Toyland’, música que Doris Day – a moça-símbolo da ‘família tradicional’ – tomou como sua lá nos anos 1960 (que delícia essa ironia que o filme nos traz!).


Um filme perfeito em suas imperfeições

“Tangerine” chega ao fim com uma das cenas mais belas que vi em um filme (e que é mais um testamento às atuações das protagonistas). E, à medida que os créditos sobem e que vamos abandonando Sin-Dee e Alexandra, é inevitável não sentir um certo vazio. Não dá para considerá-lo um filme perfeito tecnicamente. Longe disso. Mas há mais sentimento nessas imagens confusas filmadas por três iPhones que em superproduções cheias de floreios, como foi com o mais badalado “A Garota Dinamarquesa”.