Na sua segunda temporada, a série Demolidor da Marvel Television examina os custos e as consequências da vida de super-herói. Se a primeira temporada podia ser comparada ao sempre influente Batman Begins (2005), a segunda é o Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008): o herói já foi aceito – inclusive do lado de cá da tela – e as suas ações desencadeiam consequências imprevistas. Além disso, a jornada dele passa a ser definida pelos novos personagens que surgem em seu caminho.

A temporada já se inicia numa espécie de cena quase metalinguística, um momento de “estamos de volta, pessoal” no qual o Demolidor (Charlie Cox) persegue uma quadrilha de malfeitores pela cidade. Imediatamente somos transportados de volta ao universo do bairro nova-iorquino de Hell’s Kitchen e nos lembramos das razões pelas quais aquela primeira temporada foi tão legal: por causa da ação, impressionante para os padrões televisivos, e por causa daquele interessante personagem heroico, um homem dividido entre a virtude e o pecado – afinal, a perseguição acaba numa igreja, uma cena 100% Demolidor – e entre a vontade de fazer justiça e o óbvio prazer que ele obtém ao espancar bandidos. E agora ele já está com seu bacana uniforme vermelho desde o começo…

A aparição do Demolidor e a sua vitória contra o Rei do Crime, Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio), deixaram um vácuo de poder no bairro. E justo quando os criminosos parecem querer se reagrupar, eles começam a ser assassinados por um “exército de um homem só”: Frank Castle (Joe Bernthal), o Justiceiro. E aqui vale um aparte: como o Demolidor, o Justiceiro foi um dos personagens da Marvel que não se deu bem na tela grande. Seu caso foi até pior, pois ele estrelou nada menos que três produções fracassadas ao longo das décadas… É de se estranhar a incapacidade dos cineastas que trabalharam com ele de fazer funcionar um personagem com motivações tão básicas e cuja psicologia é tão simples.

Em todo o caso, a redenção na telinha é perfeita para o Justiceiro, assim como foi para o Demolidor. Além dos roteiristas fornecerem um background mais forte e realista para o personagem, retornando-o ao seu conceito básico de um veterano de combate ao invés de um policial como nos filmes, Bernthal é simplesmente sensacional no papel, interpretando-o com uma intensidade assustadora intercalada por momentos de sensibilidade e vulnerabilidade, como no seu incrível monólogo no cemitério no quarto episódio. E mantendo a analogia com Batman: O Cavaleiro das Trevas, ele e o Demolidor travam uma conversa tensa no terceiro episódio, na qual ficam claras as naturezas opostas, mas muito próximas, dos dois personagens.

O Justiceiro é tão poderoso e marcante que, por um momento na temporada quando ele sai de cena, temos até dificuldade em aceitar a segunda nova figura deste ano: Elektra, a ex-namorada grega e misteriosa de Matt Murdock, o alter-ego do Demolidor, que retorna para lhe complicar a vida. Elektra é vivida pela interessante Elodie Yung, que imediatamente estabelece uma química sexual forte com Cox. Ao contrário do Justiceiro, Elektra demora um pouco para se estabelecer e a série se confia mais no visual exótico da atriz do que propriamente nas suas capacidades de intérprete. Mas ao longo do tempo ela acaba convencendo o espectador e traz novos elementos para a série. Afinal, é por meio dela que somos introduzidos à grande ameaça da temporada, a misteriosa organização de ninjas conhecida como “A Mão”.

A ameaça da Mão é grande e, de novo, evoca algumas lembranças da bat-trilogia de Christopher Nolan. No entanto, ela também serve para deixar o seriado mais interessante: apesar dos clichês, é fascinante assistir à forma como os roteiristas da série integram esses elementos mais fantasiosos e assumidamente dignos das pulp fictions e das HQs com a vertente de “programa de tribunal” que “Demolidor” invariavelmente possui. Afinal, o protagonista é ao mesmo tempo super-herói e advogado, e alguns dos episódios no meio da temporada, aqueles centrados no julgamento de Castle, possuem qualidade e drama dignos de figurarem nos conhecidos seriados legais americanos. Ou seja, nesta temporada a série apostou em duas vertentes aparentemente opostas, mas conseguiu fazê-las funcionar, e de quebra tornaram mais interessantes os personagens coadjuvantes, Foggy Nelson (Elden Henson) e Karen Page (Deborah Ann Wool). Neste ano, ambos recebem dos roteiros coisas mais importantes para fazer além de correr atrás de Murdock.

O protagonista, aliás, é retratado de forma negativa em vários episódios, o que é interessante e adiciona complexidade ao seriado. Sua luta contra o crime é, no fim das contas, unilateral e egoísta, e acaba trazendo problemas sérios às pessoas ao seu redor. Trata-se do velho dilema do conceito de super-herói, base da clássica história Watchmen de Alan Moore: afinal, o herói causa mais problemas do que resolve? É verdade que a série não explora tão intensamente essa questão – o centro moral do programa, a enfermeira Claire vivida por Rosario Dawson, acaba reafirmando o conceito do Demolidor para Murdock em dado momento – mas o próprio fato dos roteiristas reconhecerem essa complexidade torna o seriado melhor.

Assim como a temporada anterior, esta também perde um pouco do fôlego perto do final, abusando de alguns clichês de roteiro como coincidências e a busca dos personagens por um “MacGuffin” cujo conceito nunca é realmente explicado para o espectador, o tal do “Céu Negro”. Mas esses problemas não chegam a prejudicar seriamente o programa, que ainda encontra tempo para fazer referências a Jessica Jones e à futura série do personagem Luke Cage. Nesta segunda temporada, mais eletrizante e até mais violenta que a anterior, Demolidor se torna mais do que apenas o melhor seriado com super-heróis da atualidade. Torna-se também, acima de tudo, ótima televisão, viciante e envolvente, capaz de unir drama de qualidade aos conceitos exagerados típicos das histórias em quadrinhos. E faz o que todo bom seriado deve fazer: nos deixa ansiosos para ver mais. E também ansiosos por uma série própria do Justiceiro – Marvel TV, por favor, providencie.

Os fãs de HQs e de seriados ficarão gratos.