Há sempre um impasse, para quem escreve sobre manifestações artísticas, sobre como melhor descrever o impacto, intelectual, emocional, que uma obra de arte teve sobre você. Crítica, afinal (ao menos para mim), sempre teve a ver com tentar comunicar o entusiasmo despertado por uma experiência estética – ou, para colocar de uma forma menos metida a besta, com convencer quem está lendo de que o filme tal vale a pena.

Toda essa lenga-lenga foi para justificar a recorrência, nesse texto, de alguns adjetivos bastante antipáticos, pelo uso indiscriminado e recorrente por pessoas que, como eu, escrevem sobre filmes: ousado, intrigante, denso, provocativo, você entendeu. São os únicos possíveis para tangenciar a experiência de se assistir à filmografia do canadense Denis Villeneuve, o homenageado deste mês nesta coluna. Para os que só o descobriram agora, com o estupendo Blade Runner 2049, fica o aviso: Villeneuve, que desde o começo (há não muito tempo atrás, por sinal) é um cineasta diferenciado, é um dos diretores mais interessantes do mundo desde pelo menos O Homem Duplicado (2013).

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Nascido em 1967 em Quebec, distrito de fala francesa do Canadá, Denis Villeneuve cresceu em um ambiente favorável à vocação (seu irmão mais novo, Martin Villeneuve, é ator, criador de graphic novels e igualmente cineasta, responsável por Mars et Avril [2012], a primeira superprodução de sci-fi do Canadá). Trabalhando a princípio com reportagens e documentários, Denis venceu, com 24 anos, uma competição nacional de jovens talentos da área audiovisual promovida pela Radio-Canada, a emissora estatal do país – salto que o levaria, definitivamente, para o trabalho profissional com filmes. Ele também teria um aprendizado importante com Pierre Perrault, um dos gigantes do documentário no Canadá e figura-chave do cinema direto nas Américas; Villeneuve atuou como assistente de Perrault em seu último trabalho, Cornwall, lançado em 1998.

Nesse mesmo ano, o artista despontaria de forma promissora no cenário nacional, com Un 32 Août sur Terre (algo como O 32º Segundo Dia de Agosto na Terra), seu primeiro longa de ficção. A trama existencialista, sobre uma jovem (Pascale Bussières) que começa a questionar sua vida após um acidente quase fatal (prenúncio das meditações vistas a partir de O Homem Duplicado), foi exibida com sucesso na mostra “Um Certo Olhar”, do Festival de Cannes, e indicada pelo Canadá para a “peneira” da Academia de Hollywood, onde não passou. A boa recepção, porém, pôs o nome de Villeneuve no mapa, além de tornar possível a produção do seu próximo longa.

Redemoinho, de 2000, já mostra um artista mais maduro e consciente, e desenvolvendo com maior densidade (e salutar menor pretensão) a preocupação mais subjacente à sua obra: o não-reconhecimento de si mesmo. Com sua história sobre uma mulher (Marie-Josée Croze – é interessante a recorrência de protagonistas femininas na obra de Villeneuve) alcoólatra e deprimida que mata acidentalmente um pescador, para logo em seguida se envolver afetivamente com o seu filho (não, não é um dramalhão – apesar do enredo pesado, quase de ópera, Villeneuve adota um tom mais sutil e irônico para o material, narrando a trama, por exemplo, pelo ponto de vista de um peixe), a obra afirma confiantemente a elegância visual do cineasta, e seu talento para a direção de atores. Novo sucesso: com cinco prêmios Genie (o Oscar canadense), Redemoinho assegurou a reputação de Villeneuve como o nome mais talentoso de sua geração.

Tendo se imposto com dois dramas íntimos, emocionais, Villeneuve voltaria ao aprendizado do documentário para fazer o quase sociológico Polytechnique (2009). Muito comparado a Elefante (2003), de Gus van Sant, por também tratar de um massacre escolar – no caso, a chacina de 14 alunas da Escola Politécnica de Montreal, em 1989, por um estudante que afirmava odiar o movimento feminista –, Polytechnique é, porém, um animal diferente. Rodado em desolador e implacável preto-e-branco, o filme acompanha, com tensão crescente, três histórias paralelas, incluindo a do assassino e de uma das vítimas, no dia fatal. Mas, enquanto Elefante se ocupava principalmente dos assassinos, seguindo de forma silenciosa e neutra a sucessão dos acontecimentos, Polytechnique se posiciona a favor das vítimas, reiterando a absurda misoginia do atirador e exaltando a postura da protagonista Valérie (Karine Vanasse), sobrevivente do massacre que anseia por um mundo melhor para os filhos. Como Elefante, Polytechnique foi acusado, à época, de tentar estetizar o horror, de transformar o massacre de Montreal em entretenimento para vender pipoca; polêmica que hoje soa apenas vazia, despropositada. Fica um filme igualmente brilhante, talvez menos inquietante que o trabalho de Van Sant, mas mais humano e comovente. O outrora prodígio da mostra “Um Certo Olhar” voltava agora como competidor principal em Cannes, sem vencer, mas amealhando prêmios (incluindo o Genie de Melhor Filme) e se fazendo notar no circuito mundial.

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O longo hiato entre Redemoinho e Polytechnique marca a evolução entre o jovem promissor e o artista já consumado. É com a segurança da maturidade que Villeneuve inicia a sua produção prolífica da nova década, realizando seis filmes entre 2010 e 17, e construindo talvez o conjunto mais sólido e surpreendente desse período.

Incêndios (2010), embora com cenário e trama largamente diferentes, é um filme-irmão de Polytechnique. Dois irmãos canadenses (Mélissa Désormeaux-Poulin e Maxim Gaudette) descobrem através do testamento da mãe (a sensacional Lubna Azabal) o passado desta, vivido em meio aos horrores das guerras santas do Oriente Médio. Tenso, atmosférico, chocante e franco na condenação da intolerância religiosa, o filme traz o mesmo subtexto humanista, de elogio da decência sobre a barbárie, que estava presente em Polytechnique. Um dos melhores trabalhos de Villeneuve (e, se este texto parece generoso demais ao festejar praticamente todo filme do canadense, a verdade é que até agora o artista não deu nenhum passo em falso realmente sério; mesmo os juvenis Août sur Terre e Redemoinho são bastante interessantes), Incêndios enfim atraiu os olhos de Hollywood para seu criador – a obra foi indicada a Melhor Filme Estrangeiro (onde perdeu para Em um Mundo Melhor, da dinamarquesa Susanne Bier) e, mais importante, rendeu um convite para Villeneuve levar sua visão a Hollywood.

Curiosamente – o único paralelo que me à mente é com o holandês Paul Verhoeven (de Robocop e O Vingador do Futuro) –, foi em Hollywood que Villeneuve pôde realizar melhor suas ideias. Não sei até quando vai durar essa união feliz, mas, de Os Suspeitos (2013) até Blade Runner 2049, desse ano, a evolução de Villeneuve é sensível, e sempre pra cima. Se antes ele era um cineasta talentoso, com alguns filmes verdadeiramente intrigantes e provocativos (sorry) no currículo (principalmente Incêndios e Polytechnique), Villeneuve vira um diretor ousado, surpreendente, com algo de novo a dizer a cada novo trabalho.

Mas essa escalada não começou de cara. Os Suspeitos, seu primeiro filme de 2013, não está na mesma alta voltagem de Polytechnique e Incêndios. A trama grave, pesarosa, sobre o sequestro de duas meninas e a deterioração moral que atinge todas as vítimas – pais, irmãos, até o detetive encarregado do caso (Jake Gyllenhaal, em mais um trabalho impecável) – traz a elegância visual e o domínio da atmosfera que o diretor sabe manejar tão bem, mas o roteiro de Aaron Guzikowski, com alguns diálogos expositivos incômodos e situações que lembram mais um filme da Tela Quente, e sobretudo as atuações carregadas, à exceção de Viola Davis e Gyllenhaal, resultam no filme mais irregular da fase madura de Villeneuve. Mas podemos perdoá-lo por isso, porque, no mesmo ano, ao lado do mesmo Gyllenhaal, Denis nos daria o seu primeiro clássico.

O Homem Duplicado (2013) tem uma origem incomum para um filme de Hollywood – um romance do escritor português José Saramago – e uma estrutura narrativa ainda mais bizarra – onírica, surrealista, cheia de ambiguidades na imagem, adjetivos quase anátemas para a indústria americana do cinema. Basicamente – porque é impossível resumir satisfatoriamente o filme –, trata-se de uma meditação sobre a descoberta de um “duplo”, tanto no sentido literal (encontrar alguém no mundo que é a sua cópia exata), quando no psicológico (uma versão na aparência igual, mas perturbada e distorcida de si mesmo – ou do conceito que se tinha de si mesmo).

Dito assim, pode lembrar as voltas mais ostensivas de Darren Aronofsky (Pi, A Fonte da Vida) ao redor do próprio umbigo, mas O Homem Duplicado tem uma intensidade visceral nas imagens e um controle exato, exemplar, da atmosfera, além do já esperado show de Gyllenhaal como protagonista. Um dos filmes mais ousados, intrigantes, densos e provocativos dessa década, e um dos melhores, ponto. Claro que uma obra tão difícil de classificar passaria à margem das principais premiações americanas, mas o fato de Villeneuve tê-lo feito em Hollywood já merece aplausos.

A joia seguinte na coroa do diretor é Sicario: Terra de Ninguém (2015), uma trama policial ambientada na guerra às drogas do México, mas que se eleva além de outros bons filmes do tipo graças ao poderoso senso de indignação, de loucura e absurdo, que o fazem comparável a Apocalypse Now (1979), a obra-prima de Francis Ford Coppola sobre a guerra do Vietnã. Com atuações estupendas de Emily Blunt e Benicio Del Toro e uma narrativa claustrofóbica, de pesadelo, o filme parece a soma, a transcendência, das meditações anteriores de Villeneuve sobre a maldade – e, dessa vez, público e crítica souberam reconhecer. Um sucesso de bilheteria a ponto de inspirar uma sequência (com o nome provisório de Soldado, em filmagem) e aplausos nas principais premiações do cinema, Sicario selou de fato a colaboração do diretor com a indústria americana.

As duas constantes em sua obra até aqui – a desconstrução da identidade individual (questão central, ou importante, em praticamente todos os seus filmes) e os limites da maldade humana (que o artista vinha questionando desde Polytechnique) – pareciam até aqui apropriados aos dramas íntimos, psicológicos, e às situações de conflito que se alternam na filmografia de Villeneuve. Ninguém esperava, então, que o diretor fosse tão talhado para a ficção científica, gênero dos seus filmes mais recentes, A Chegada (2016) e Blade Runner 2049 (2017). Mas é fato: nessas duas obras, Villeneuve soube amarrar todos esses questionamentos e ainda acrescentar outros, sobretudo a respeito da natureza de fato da humanidade, tão propensa à violência e à diferença.

A Chegada, que trata o enredo tão básico da chegada de alienígenas à Terra por uma perspectiva bastante original (e saber do que de fato se trata é crucial à experiência do filme, razão pela qual vou deixar quieto) consegue ser desconcertante em seu idealismo, sem que isso seja demérito. Mesmo com os debates sucessivos sobre o terço final do filme, trata-se de um banquete visual, com toda a opulência de um artista ansioso para explorar por completo esse lado. A atuação densa, ressonante de Amy Adams, a trabalhadora mais dura da indústria na época deste texto, humaniza e dá liga a todas as considerações filosóficas do roteiro.

Mas voo mais alto alça Blade Runner 2049 – e quem diria que se poderia escrever isso a respeito da sequência, tão rechaçada, de um dos filmes mais importantes da história do cinema? Para nossa incredulidade, Villeneuve conseguiu reunir neste filme todo o aprendizado e as ideias reunidas em 19 anos de cinema, somados a seu recém-descoberto pendor para a ficção científica, um talento visual imensamente fortalecido após A Chegada, e carta branca para desenvolver as ideias riquíssimas do universo concebido por Philip K. Dick naquele primeiro filme. Com toda a transbordante densidade de seus delírios visuais e narrativos (por sinal, muita gente achou que o filme podia ser mais sucinto, principalmente na metade), Villeneuve conseguiu o que parecia impossível: uma sequência que não se limita a requentar o original, ou usá-lo como muleta, mas que reimagina e amplia com grande riqueza as ideias e o conceito visual de seu inspirador. Somado à atuação sutil e exata de Ryan Gosling, e chegamos talvez ao melhor trabalho de Villeneuve, ao lado de O Homem Duplicado e Sicario.

Porém, como se viu ao longo de todo esse texto, com Villeneuve seria injusto parar por aí. O homem tem uma das obras mais originais e consistentes do cinema recente. Não sabemos bem o que esperar de seus próximos projetos (entre os quais uma adaptação do thriller O Filho, de Jo Nesbø, e uma mais apetitosa nova versão do clássico sci-fi Duna, de Frank Herbert, levado às telas a última vez por David Lynch), mas é justo alimentar a expectativa de ser surpreendido, intrigado, provocado, sacudido. Esses críticos de cinema caem sempre nas mesmas velhas palavras, mas não tem jeito: é a língua que não dá conta de descrever a grande arte. E é melhor que seja assim: só vendo os filmes você mesmo para sentir as delícias.