O curta “Desiderium” triunfa no que parece faltar a uma parte das atuais obras audiovisuais locais: a criatividade em meio às dificuldades de produção. Ao apresentar sua trama fragmentada, focada em um triângulo amoroso, o filme de Arthur Charles enfrenta as usuais restrições técnicas que marcam os curtas-metragens amazonenses, ao passo que nelas encontra soluções criativas nas referências com que trabalha.

Sem nunca recorrer ao simples replicar dessas referências, surgem na tela ecos do surrealismo de Buñuel (e, por conseguinte, de David Lynch, ao apropriar-se de estética e situações mais contemporâneas, em especial no que diz respeito ao relacionamento entre as personagens), e, coisa corriqueira em vários bons filmes ao redor do mundo mas não necessariamente por essas bandas, o uso da referência às artes plásticas, a partir do quadro “Os amantes”, de René Magritte. Elas surgem na atenção à fotografia, figurino e direção de arte, todos calcados numa simplicidade aparente que, no entanto, revela cuidado e intenção, encontrando na montagem a cola que dá unidade a esses elementos.

Esta última, aliás, reforça a necessidade de nossos filmes pensarem para além da dificuldade de aquisição e domínio de equipamentos para fazer um “bom cinema”. Enquanto parte de nossas produções focam em excelente qualidade de imagem, captação de som aceitável e escolhas criativas que mais tem a ver com o que os aparatos de filmagem e produção no geral podem prover, “Desiderium” parece trabalhar focado no desenvolvimento do roteiro e em como traduzi-lo, dentro das claras restrições técnicas que enfrenta, em imagem e sentimento.

Quando vemos a insistência em planos fechados num rosto emoldurado pelas bordas escurecidas no melhor estilo do cinema silencioso, por exemplo, não vemos tanto o fato de que provavelmente foi como deu para fazer tal cena; vemos, sim, uma montagem criativa que envolve o espectador no clima de sonho/pesadelo que permeia a atmosfera do curta. Este, por sua vez, dialoga tanto com a história do cinema quanto com as possibilidades que tantas outras produções do passado já nos deram, as quais são constantemente ressignificadas em incontáveis filmes. Essa sacada minimiza consideravelmente quaisquer erros menores do curta.

Mas referências “cabeça” gratuitas não fazem um filme bom, e isso Charles pareceu entender bem. “Desiderium” apresenta, por sua vez, um casamento bem sucedido entre esses e outros itens citados com o que sua narrativa propõe. Resulta-se aí num curta que tanto dá vontade de escrever mais sobre como gera curiosidade de ver o que mais virá desse jovem diretor. Nada mal para uma produção de final de período da faculdade.