Num dos episódios de Desventuras em Série, os personagens estão reunidos numa mesa e um deles sugere uma ida ao cinema. É quando o conde Olaf, vivido por Neil Patrick Harris, afirma que prefere consumir seu entretenimento em casa. O ator diz isso olhando discretamente para a câmera, e essa tirada não deixa de ser uma ironia tanto para com a Netflix, produtora do seriado, quanto para com o cinema. Porque, para quem não se lembra, Desventuras em Série já teve uma adaptação para a tela grande, o filme de 2004 estrelado por Jim Carrey como Olaf – o qual, confesso, nunca assisti – e que também tinha no elenco nomes como Jude Law e Meryl Streep.

O plano dos cineastas da década passada era o de adaptar a série de livros de Lemony Snicket, pseudônimo do autor Daniel Handler. Mas a bilheteria daquele filme inicial não foi grande o bastante para justificar as sequências. Como o pessoal de Hollywood quase nunca desiste, agora a saga literária de Snicket ganha o tratamento televisivo/episódico/”netflixiniano”. E por trás da série, além de Handler como produtor-executivo e um dos roteiristas, está também o cineasta Barry Sonnenfeld. Felizmente, o resultado final da série acaba mais próximo do espírito dos seus filmes da Família Addams do que do das continuações de MIB: Homens de Preto.

Sonnenfeld dirige quatro dos oito episódios desta temporada e inicia tudo ao mostrar como os irmãos Baudelaire – Violet (Malina Weissman), Klaus (Louis Hynes) e o bebê Sunny (Presley Smith) – se veem desamparados quando seus pais morrem num incêndio. Do nada, eles são colocados sob a guarda do nefasto Conde Olaf, descrito num dos episódios como “um ator vilanesco e um vilão atuante”. Olaf só está interessado na fortuna dos irmãos e se mostra disposto a tudo para consegui-la. Mas os Baudelaire não são crianças comuns: Klaus é fanático por livros e assimila o que lê, Violet consegue se concentrar e criar qualquer invenção, e Sunny consegue roer qualquer coisa com seus dentinhos, além de se comunicar num idioma de bebê que só seus irmãos compreendem.

Eles também vivem num mundo incomum. O designer de produção do seriado, Bo Welch, já trabalhou com Tim Burton em vários projetos, por isso em termos visuais Desventuras em Série às vezes lembra Burton. Às vezes a simetria nos enquadramentos lembra Wes Anderson. E alguns movimentos de câmera incomuns são totalmente Sonnenfeld. Welch cria ambientes visualmente impressionantes, como a sala dos répteis dos episódios 3 e 4 e a serraria deprimente e mecanizada dos episódios 7 e 8.

A atmosfera estranha também é complementada pelas referencias literárias e cuidado com o texto: obras como O Grande Gatsby, Moby Dick e o escritor Haruki Murakami, entre outros, são citados; uma das personagens é fanática por gramática e isso se torna um ponto importante da trama; e os diálogos são requintados, com os personagens frequentemente explicando uns para os outros o significado de algumas palavras, o que se torna uma piada recorrente do seriado. Desventuras em Série é um programa de TV realmente apaixonado por livros e pelo seu próprio texto. Mas também encontra momentos para homenagear as artes audiovisuais quando os personagens veem filmes estranhos na TV ou no cinema.

E o próprio Lemony Snicket faz várias intervenções na narrativa, sempre comentando como as agruras dos irmãos Baudelaire serão tristes e que o espectador deveria ir ver outra coisa… O ator Patrick Warburton faz aqui, provavelmente, o primeiro narrador a roubar a cena da história que conta, e seu tom sério é paradoxalmente muito engraçado. Quase sempre de terno, ele lembra o Rod Serling de Além da Imaginação. Um Serling tão sério e melancólico que acaba arrancando risos…

Além de Warburton, as crianças estão ótimas e o elenco convidado da série é fantástico, composto tanto de rostos conhecidos de outras produções Netflix como Alfre Woodard e Will Arnett, até character actresses divertidíssimas como Joan Cusack e Catherine O’Hara. Até Don Johnson, o eterno astro de Miami Vice, aparece! Mas a grande atração do programa, assim como Carrey o foi na versão cinematográfica, é a presença de Neil Patrick Harris como Olaf. A atuação dele é daquelas com a qual o espectador precisa de um tempo para se acostumar pela esquisitice do personagem – Bem, a série também precisa de um período de aclimatação… Mas, com o tempo, Harris acaba conquistando e indo de irritante a engraçado. É um personagem difícil de interpretar porque além de histriônico, o conde é um mau ator. Felizmente, Harris consegue imprimir essa qualidade ao seu desempenho de Olaf e também aos vários disfarces que ele adota ao longo dos episódios. Quando se chega nos últimos episódios, é praticamente impossível não rir da Shirley, a persona feminina de Olaf.

Harris também canta as várias versões da canção de abertura, um verdadeiro chiclete auditivo que é difícil tirar da cabeça. As diferentes versões deixam clara a proposta narrativa do programa: Sonnenfeld e seus roteiristas dedicam dois episódios para a adaptação de cada livro de Snicket, então a cada par de episódios o programa se renova, com os Baudelaire sendo jogados num novo cenário com diferentes personagens e Olaf retornando com um novo disfarce para lhes atazanar a vida. Essas mudanças também ajudam a manter o programa fresco, embora certa repetição acabe sendo meio inevitável.

Desventuras em Série tem seu formato e estilo definidos. De fato, é a típica produção com “muito estilo e pouca substância”. Mas é tanto estilo que acaba compensando. Nos seus melhores capítulos, é difícil não se divertir com as maluquices da trama, ou com a canção interpretada por todos os personagens no episódio final, um momento estilo Magnólia (1999) que encerra a temporada com um estranho clima de diversão melancólica. Na canção de abertura, Olaf canta que esta é “a série que vai destruir o seu dia”, e Snicket chega a dizer “é melhor vocês irem assistir outra coisa no streaming”. Felizmente, estes acabam sendo comentários apenas irônicos de um seriado, no mínimo, diferente. E que nasceu para a TV episódica: com desculpas aos criadores do longa de 2004, mas Desventuras em Série traz o seu formato ideal de adaptação no título! É sempre bom prestar atenção nas palavras…