Em 2018, completa-se 100 anos do nascimento de Ingmar Bergman. Nascido em 14 de julho de 1918, o mundo comemora o centenário desse grande diretor, acima de tudo artista, e seu legado. A carreira de Bergman foi extensa e prolífica, apesar de ter se tornado conhecido mundialmente pelo seu trabalho como diretor de cinema, ele era um homem do teatro, além de exímio escritor. Seus trabalhos compreendem 300 textos em diversos formatos, pouco mais de 60 filmes para televisão e cinema, fora os documentários realizados, e mais de 170 peças de teatro, sendo esse a primeira casa do artista.

Ao longo de 60 anos de ofício, o sueco foi autor, dramaturgo, diretor de teatro e cinema, ademais de outros adjetivos fruto do seu percurso artístico. A dimensão da sua persona e a colaboração transcendental para o audiovisual merece celebração. Por essa razão, o Cine Set vai reviver a trajetória dele que foi e continua sendo, uma vez que ele vive em sua arte, um dos mais proeminentes nomes do cinema de todos os tempos.

O site vai dedicar parte da sua programação para o Especial Ingmar Bergman 100 Anos. Iremos voltar às suas obras cinematográficas, desde o seu primeiro filme, para, em ordem cronológica, comentar os elementos de cada um dos seus trabalhos, com exceção de alguns poucos filmes realizados para televisão sueca, dado a impossibilidade de acesso. Desse modo, a ideia é revisitar cada um dos 48 longas-metragens disponíveis, toda sexta-feira no decorrer das semanas, até o fim do ano. O propósito é homenagear a grandiosidade de Bergman e, mais ainda, memorar as obras responsáveis pela evolução do cineasta referência de muitos.

Abaixo o início do especial com a apresentação e comentários sobre seu primeiro filme.


CRISE (KRIS), 1946

Dois anos antes do lançamento do longa-metragem considerado seu debut no cinema, Ingmar Bergman fez, de fato, sua estreia no mundo cinematográfico, como roteirista e assistente de direção do filme “Tortura do Desejo” do sueco Alf Sjöberg. Conforme conta em seu livro Imagens, durante a etapa final das filmagens foi pedido a ele para filmar as últimas cenas externas do longa, visto a indisponibilidade de Sjöberg, esse foi o momento em que Bergman realizou suas primeiras imagens profissionalmente para o cinema. Porém, é em 1946 com “Crise” que ele tem sua primeira incursão completa como diretor, iniciando plenamente nas telonas com uma produção dirigida e roteirizada por ele.

O filme é uma adaptação da peça “Moderdyret” (The Maternal Instinct) do autor dinamarquês Leck Fisher, narra a história de Nelly (Inga Landgré), uma jovem de 18 anos recém-completados, cheia de sonhos e energia típica da idade, vive uma vida pacata na pequena cidade em que nasceu com sua mãe de criação, a professora de piano Sra. Ingeborg Johnson (Dagny Lind). Durante os preparativos para o baile da cidade, ambas têm sua rotina virada de cabeça para baixo com o retorno inesperado de Jenny (Marianne Löfgren), mãe biológica de Nelly e quem ela pensa ser sua tia. Seguida pelo seu amante Jack (Stig Olin), o qual seduz sua filha na noite da festa, ela volta para persuadir a garota a ir viver com ela na cidade. Ponto chave que desencadeia uma série de acontecimentos desde a partida da menina para morar com a mãe, até seu retorno à pequena vila depois de marcada por uma tragédia.

Os personagens e seus subplots gravitam em torno da jovem Nelly. De um lado, a senhora Ingeborg, completamente devota à adolescente a qual criou desde pequena, enfrenta a fragilidade da vida frente a grave doença escondida de todos, além do desespero pela partida da garota. No mesmo contexto, o veterinário Ulf, hóspede na casa da professora, é apaixonado por Nelly, mas sempre tem suas investidas negadas. Do outro lado, a solitária Jenny, dona de um salão de beleza na cidade, teve ascensão na vida em troca da convivência com a filha. Finalmente, o despreocupado Jack, de longe o personagem mais interessante e complexo, é um boêmio que se aproveita da boa vida oferecida pela amante, perdido na dualidade da relação abusiva com Jenny e a paixão por Nelly.

A essência teatral é presente no longa. Como nos palcos de teatro, a narrativa parece se dividir em três atos. Os cenários transitam entre a rotina pura na aldeia, seguido da infelicidade na capital e, por fim, a volta para a normalidade da vida na área rural. O próprio narrador em off, fora dos acontecimentos do enredo, deixa claro se tratar do resultado de peça. No início do drama, ele sentencia: “Que comece a história. Eu não chamaria de um grande e trágico drama. É apenas uma história comum. Quase uma comédia. Subamos as cortinas.”. A declaração se mostra pouco verdadeira no decorrer do melodrama, longe do simples ou banal.

Sem riqueza de argumento, aspectos técnicos pouco expressivos, além da falta de assinatura impressa, a narrativa finda como um conto moralista — a corrompida Nelly abandona a degeneração da cidade grande e volta para a pureza da cidadezinha natal —, sem uma construção efetiva, a protagonista é o personagem menos envolvente de todos, sempre passiva das ações dos outros em despertar sua evolução narrativa, ela nunca gera simpatia ou aversão.

Mesmo distante da proeminência dos seus grandes sucessos e da assinatura efetivamente bergmaniana presente nos seus trabalhos posteriores, é possível notar em certo momento a presença de temas comumente explorados pelo diretor: a melancolia de Ingeborg gerada pela noção da morte; e as questões existenciais do boêmio Jack, especialmente pontuada em seu diálogo com a Sra. Johnson no comboio à espera do trem, é um elemento com pouco espaço no enredo, mas bem aproveitado. “Crise” é só o primeiro degrau de Bergman no entendimento da sua arte e edificação de uma filmografia estabelecida por dezenas de obras-primas.

CURIOSIDADES
  • No inverno de 1942, durante um longo período no hospital e, posteriormente, de recuperação, Bergman escreveu o roteiro de “Tortura do Desejo”, cujos diretos foram comprados pela SF Studios para produção do filme;
  • * A realização de “Crise” quase foi interrompida pelos executivos do estúdio, dada a catástrofe do início das filmagens e inexperiência de Bergman, mas graças a intervenção de Carl Anders Dymling, CEO da SF na época, o projeto continuou.