Tubarão é um dos trabalhos mais aclamados de Steven Spielberg tornando-se um marco do cinema de suspense de uma forma geral. Porém, no início a situação não era das melhores. Ele pertencia a um seleto grupo de filmes cujos prognósticos apontavam para um potencial fracasso de bilheteria em decorrência de vários problemas de produção – atrasos no cronograma de filmagens, orçamento no limite, equipe técnica estressada e a desconfiança do estúdio em relação a um diretor inexperiente para comandar as ações de um grande filme. Junto com Poderoso Chefão (1972), Titanic (1997) e recentemente Mad Max – Estrada da Fúria (2015) são exemplos de obras que não concretizaram a visão pessimista durante as filmagens e se tornaram sucessos de público e crítica, razão a qual até hoje habitam o imaginário cinematográfico com exceção do filme de George Miller que requer ainda mais tempo para confirmar este argumento.

Ele é considerado o primeiro Blockbuster do cinema americano. Até então nenhum filme tinha feito filas que dobravam as esquinas e lotavam os cinemas. Ultrapassou com facilidade a marca de 100 milhões de dólares apenas em solo americano. Marcou também o início dos arrasa-quarteirões que perduram até hoje com lançamentos de filmes esperados com ansiedade pelo público no verão americano. Completando 40 anos do seu lançamento, podemos dizer que Tubarão continua uma obra atual e marcante? Eu diria que sim, até porque a fera assassina dos mares de Spielberg possui uma cartilagem duradoura, quase atemporal que se destaca por uma senhora mandíbula cuja mordida mexe com os medos mais primitivos do nosso inconsciente.

O Jovem diretor e suas influências 

Steven Spielberg antes de dirigir o seu primeiro sucesso vinha de uma obra menor que tinha agrado à crítica mesmo sendo discreto nas bilheterias: Louca Escapada (1974). Mas foi o seu trabalho lançado diretamente para TV, Encurralado (1971) que o cineasta utilizou como base para rodar Tubarão. Ambos trabalham com sujeitos comuns que enfrentam “monstros” desconhecidos. Sabemos que este existe mais nunca o vemos na sua totalidade – para termos uma noção real da sua dimensão – apenas em partes, como se a própria monstruosidade fosse mais sentida do que vista. Isso ocorre com o caminhão ensandecido em Encurralado e a fera submersa de Tubarão. Não dá para negar que ideia de provocar o medo pela sugestão é sem dúvida o coração do cinema do mestre Hitchcock.

Só que Spielberg não copia meramente a fórmula do cineasta britânico, ele a inova e direciona o suspense a sair dos crimes passionais ou das intrigas conspiratórias para trilhar o caminho do cinema de aventura, do drama familiar e principalmente do homem diante da fúria da natureza na qual ele não consegue controlar. Tubarão é uma contraproposta de como utilizar o suspense dentro do arcabouço de cinema de entretenimento, sem perder a essência e classe deste tipo de gênero. Funciona como uma ode para Os Pássaros de Hitchcock, só que em uma embalagem mais acessível ao grande público.

Um sujeito mecânico chamado Bruce

O próprio diretor disse em entrevista como o processo de filmagens foi difícil “Tubarão é um filme divertido para se ver, mas não é tão divertido de se fazer”. Esta dor de cabeça surgiu pelo boneco mecânico do monstro apelidado pela equipe técnica de Bruce que se recusava a funcionar nas maiorias das cenas. Para contornar o problema, o cineasta diminuiu a participação física do amigo Bruce, mas deixou que ele estivesse presente em quase todo o filme, apoiando-se na melhor fórmula que o suspense pode oferecer que é não escancarar o horror e sim deixá-lo subentendido. É como se mostrasse nada e ao mesmo tempo tudo.

Neste ponto as dificuldades surgidas nas filmagens foram resolvidas na base da criatividade principalmente no uso das técnicas de manipulação pelo seu diretor: o animal mecânico foi substituído pela câmera subjetiva para evocá-lo, pelos pequenos detalhes visuais (as manchas na água) e o uso com precisão do instrumental de John Williams – que por sua vez, personifica para o espectador a “presença” física do Tubarão com seus acordes angustiantes – além do trabalho de edição, na qual sugiro que vocês observem o quanto ele é a coluna vertebral do filme junto com a montagem hábil.

É a prova que até hoje quando se fala em cinema, o conjunto da obra ainda é o essencial. É como se o horror fosse consolidado em doses homeopáticas, lapidado por um bom artesão que sabe entreter sem abrir mão das ferramentas clássicas de suspense. Uma fórmula simples e genial que infelizmente os cineastas de ação de hoje ignoram. Nas mãos de um diretor qualquer, o enredo de Tubarão descambaria para o Trash, mas nas mãos de Spielberg o que seria um verdadeiro tiro no escuro, é sem dúvida o seu diferencial.

O bicho-papão que habita as profundezas do mar 

A história do Xerife Martin Brody (Roy Scheider, falecido em 2008) que combate um tubarão branco que ataca na praia da pequena cidade de veraneio Amity é mais que conhecida. O livro de Peter Benchley na qual se baseia o filme é seguido à risca, com apenas uma diferença – o olhar sobre o protagonista. No romance o enfoque é Brody, um homem que carrega inseguranças e culpas oriundas do passado que refletem no seu comportamento presente, na qual o tubarão é o símbolo deste fracasso como homem e por isso é preciso combater a fera para vencer os seus medos. No filme, o foco é o peixe assassino, é ele que gera a tensão e o medo incontrolável, a ameaça real em desconstruir os laços familiares e civilizatórios de Amity, uma força da natureza que precisa ser combatida para evitar que mais tragédias aconteçam na cidade. Pode-se dizer que a forma como Spielberg filma ou caracteriza a fúria do seu monstro represente sua ambição ou desejo próprio de alcançar seu lugar ao sol na indústria cinematográfica.

 Mas essa análise é pequena perto do exercício de suspense que é proporcionado. Tubarão mexe com aquele nosso temor mais profundo conhecido como medo primitivo, a representação da figura do bicho papão que habita nosso imaginário e quando criança estimulava olharmos debaixo da cama ou fecharmos a porta do armário antes de dormir para evitar a surpresa desagradável. A criatura do filme reflete o medo daquilo que não vemos, mas que existe. Você sabe que é o medo, mas não pode pegá-lo ou pará-lo. Para piorar você não sabe por que ele está agindo dessa maneira. Essa é a mesma sensação que Martin Brody vê o tubarão no filme.

É claro que nada disso teria força, sem a encenação da linguagem cinematográfica pelo seu diretor. Os trinta minutos iniciais são uma aula de como fazer cinema de suspense. Desde a inesquecível cena de abertura com a câmera sob o ponto de vista do agressor, atingindo o ápice na morte do garotinho na praia em qual Spielberg utiliza diversas pistas (algumas falsas) mantendo o espectador sempre em clima de ansiedade total até o momento derradeiro de horror. Vale destacar a homenagem velada a Um Corpo que Cai (1958) de Hitchcock através do uso do zoom vertiginoso, técnica criada pelo Mestre no referido filme. É junto com a cena da escadaria de Os Intocáveis (1987), um dos melhores momentos do cinema de fomentar a atmosfera de suspense de forma dinâmica.

Por estas razões que Tubarão é cinema de qualidade. Transforma um simples filme de monstro em um belo estudo de suspense. Ainda adiciona drama familiar e aventura, na qual somos agraciados com uma intensa e impactante caçada entre homem versus a natureza. Segue com louvor, a essência do cinema de Hitchcock: o medo é gerado por aquilo que não se vê mas que se sente perto e como algo mortal. É uma bela experiência de mexer com nossos medos mais primitivos.

Aproveitando que as praias americanas estão órfãs desde que o chefe Brody partiu desta para melhor (o ótimo Roy Scheider), faça a gentileza de prestigiar a última sessão do filme a ser exibida hoje nos filmes clássicos da rede Cinemark. É uma forma de homenagear não apenas o nosso querido xerife como também combater esta fera que mesmo quarentona, continua alimentando nossos maiores medos.