Edgar Allan Poe é o grande culpado por me fazer sentir um frio na espinha ou remeter a pensamentos ruins quando vejo a imagem de um gato ou corvo preto. Ele foi o primeiro autor da literatura de horror que li antes mesmo de Stephen King, inegavelmente o maior escritor da minha geração. Foi em razão dos seus dois escritos assustadores (O Corvo e o Gato Preto) que minha relação com estes animais nunca mais foi a mesma.

Poe dentro da literatura de horror soube equilibrar mistério e macabro. Seus ensaios são uma mistura de romance-gótico focados no lado obscuro da alma humana, no caso a natureza sombria dos seres humanos, por isso é comum encontrar temas recorrentes como morte, fantasmas, ansiedades, insanidades e pesadelos nas suas obras.

Diferente de H.P.Lovecraft, cujos trabalhos são extremamente difíceis de serem adaptados para a tela (o que levou a ganhar a alcunha de o rei do indizível), os contos e poemas de Poe por sua vez são mais acessíveis. Talvez o complicado nestas transposições seja captar a atmosfera gótica e macabra da imaginação fértil do escritor que sabia manter um excelente clima de mistério na encenação dos cenários e locais onde ocorriam suas histórias e o único que realmente chegou perto neste quesito de descrição foi Stephen King.

Logo, esta lista do Cine Set não teve dificuldades para encontrar cinco ótimas adaptações baseadas nas obras do escritor. A grande dificuldade na verdade foi ter que selecionar apenas cinco filmes em um conjunto de tantos outros ótimos. Neste quesito, Poe leva vantagem sobre King e Lovecraft, pois suas obras tiveram melhores adaptações para o cinema, sendo a sua média melhor quando comparada com as dos outros dois escritores.

Vale mencionar que no cinema, um triângulo amoroso foi firmado com o escritor: o lendário diretor Roger Corman dirigiu nada menos que oito trabalhos baseados nos seus contos em um intervalo de apenas cinco anos (entre 1960 e 1965). Junto com ele, nada menos que o grande Vincent Price participou de vários filmes, interpretando com maestria os seres humanos atormentados e excêntricos existentes na literatura de Poe. É inegável que a presença de Price ajudou no êxito dos filmes de Corman. Por isso, seja bem-vindo nesta viagem pela obscura alma do ser humano nas adaptações cinematográficas – sem ordem de preferência – de Edgar Allan Poe:


1. No Quarto Escuro de Satã (1972, de Sergio Martino)

Adaptado do conto Gato Preto, Martino mantém a essência da discussão moral da obra de Poe, destilando o seu repertório sobre amoralidade do ser humano. Não falta violência sexual, abuso psicológico e personagens sem escrúpulos ou pudores. O personagem do gato (chamado de satã no filme) funciona como parâmetro moral do enredo, onde nada é o que aparenta ser. O cineasta mantém o clima de mistério sempre pontual que surpreende graças as boas reviravoltas do roteiro que apresenta a essência passional dos contos do escritor: vingança e ambição. Apesar de utilizar algumas idéias dos Giallos, Martino acaba privilegiando o formato do suspense clássico que brinca com a temática sobrenatural do conto de Poe. Destaque para Luigi Pistilli e Anita Strindberg, brilhantes como um casal amoral e perverso.


2. A Queda da Casa de Usher (1928, de Jean Epstein)

É a primeira adaptação do escritor para o cinema. Epstein abusa da atmosfera macabra e sinistra que ganha contornos opressores com os toques do expressionismo francês na qual o diretor fez parte. Mesmo com a metragem curta (63 minutos), Epstein cria o mundo fantástico de Poe dentro de uma narrativa densa e de enredo macabro. Destaque para Jean Deubcourt que personifica com perfeição Roderick Usher um sujeito obsessivo e solitário que tenta preservar a beleza da sua mulher em um quadro. Mesmo realizado na década de 20, esta versão muda do conto do escritor exala perda, possessão e desespero. E quem escreveu o roteiro junto Jean Epstein, foi o mestre Luis Buñuel.


3. O Poço e o Pêndulo (1991, de Stuart Gordon)

Geralmente especialista em adaptar as obras de H.P. Lovercraft, Stuart Gordon sai-se muito bem nesta ótima adaptação de Poe, produzida diretamente para TV. A história se passa na época da inquisição espanhola de caça as pessoas que não agiam de acordo com as normas do Cristianismo. Neste ponto, o cineasta encena o texto do escritor de forma crua e mordaz. Na verdade, “O Poço e o Pêndulo” é uma crítica ferrenha ao cristianismo e a inquisição religiosa. Para o cineasta, os humanos e os fanáticos religiosos são cruéis e perversos enquanto as bruxas são a salvação. Lance Henriksen esta genial como o grande vilão que conta ainda com a participação de Oliver Reed. A cena da língua é realmente desagradável, ficando na memória do espectador por bastante tempo. Mais uma parceria de Gordon com o roteirista Denis Paoli e a produtora Full Moon.


4. Dois Olhos Satânicos (1990, de Dario Argento e George Romero)

O que dizer da adaptação de dois contos de Poe dirigida por mestres do terror como George Romero e Dario Argento? Não tinha como dar errado e realmente o resultado é acima da média. A ideia inicial de Argento para o projeto seria fazer uma antologia de quatro contos do autor com a participação de John Carpenter e Wes Craven. Acabou que apenas os dois primeiros ficaram e juntos adaptaram os contos O Caso do Sr.Valdemar e O Gato Preto, ambos mesclando sobrenatural com o terror gótico. O primeiro dirigido por Romero oscila na narrativa ainda que seja carregado na boa atmosfera de horror. Sem contar que o pai dos zumbis não poderia estar em terreno conhecido, pois o conto do escritor trabalhar com zumbificação. Já o Gato Preto dirigido por Argento é carregado de loucura e alienação sempre explorando o viés sobrenatural do conto. É um dos seus raros trabalhos que não se prende aos recursos estéticos e privilegia o suspense “hitchcockiano”. Conta com a ótima atuação de Harvey Keitel, além dos trabalhos de maquiagem do Mestre Tom Savini e a trilha sonora de outro mago italiano chamado de Pino Donnagio. No geral, Dois Olhos Satânicos é uma ótima adaptação dos contos de Poe e também se utiliza da liberdade artística para usar outras obras do escritor. Imperdível.


5. A Orgia da Morte (1964, de Roger Corman)

Ótima adaptação do conto A Máscara da Morte Escarlate que guarda semelhanças com “O Sétimo Selo” de Bergman – funciona como a versão B do filme sueco. Para um cineasta considerado como o Pai dos filmes B, Corman realiza um belo espetáculo visual profano, principalmente pelo cuidado estético e de elegância em cada frame e uso das cores – o vermelho e amarelo funcionam como ótimos elemento de horror e parecem artes cênicas em movimento. É interessante que a direção explora cada simbolismo gótico do texto. Vale ressaltar, a ótima fotografia do futuro cineasta Nicholas Roeg que ajuda a cadenciar a densa atmosfera de horror. Se tem um papel que ajuda definir Vincent Price como interprete do terror, sua performance do príncipe Prospero cai como uma luva. Pode-se dizer que A Orgia da Morte é um dos mais elegantes e sombrios filmes de Corman e bem próximo da perfeição na personificação do mundo gótico de Poe. Representa o ápice da trindade Corman/Price/Poe. Filmaço.


Menções Honrosas

Muralhas do Pavor (1962): três contos de Poe (Morela, Gato Preto e o Caso do Sr.Valdemar) adaptados em formato de mosaico. Além de Corman/Price, o roteiro foi escrito por nada menos que o grande Richard Matheson.

Dança Macabra (1964): Só não entrou na lista porque é uma livre adaptação do conto de Poe, onde quase nada do mesmo foi mantido. É dirigido e escrito por duas lendas dos faroestes: Antonio Margheriti e Sergio Corbucci

Solar Maldito (1960): primeiro filme da dupla Corman/Price no mundo fantástico de Poe. Baseado no conto A Queda da Casa de Usher.

Histórias Extraordinárias (1968): Não chega a empolgar esta adaptação de três contos de Poe, mas vale uma conferida por ser dirigido por três grandes cineastas: Roger Vadim, Louis Malle e Frederico Fellini. Sem contar o excelente elenco que conta com nomes como Brigitte Bardot, Alan Delon, Terence Stamp, Jane Fonda e Peter Fonda.