Há exatamente 33 anos Joel e Ethan Coen deram o pontapé inicial na carreira com o lançamento de “Gosto de Sangue”, um suspense policial sobre o dono de um bar que, após confirmar a infidelidade da esposa, contrata o mesmo detetive que revelou a traição para assassinar ela e seu amante. A estreia definiu bem o que se poderia esperar posteriormente. Cinco filmes depois os irmãos revisitam o argumento usado no primeiro trabalho para a criação de “Fargo”. O longa é fiel às características presentes no início da carreira: uma produção carregada de sordidez e sarcasmo, sendo um dos sucessos mais memoráveis da dupla e colocando-os, definitivamente, em evidência na disputada Hollywood.

Não é à toa que o longa-metragem recebeu indicações em todas as principais premiações da indústria cinematográfica como também garantiu algumas delas: o prêmio de Melhor Direção para Joel Coen no BAFTA e Cannes, além das estatuetas de Melhor Roteiro Original para a dupla e Atriz para Frances McDormand no Oscar de 1997. O filme é a sexta produção dos Coen e a quinta parceria deles com McDormand. A atriz teve a performance afiada muito bem reconhecida no seu primeiro prêmio pela Academia. O longa ainda rendeu a indicação inicial de Roger Deakins na categoria de Melhor Direção de Fotografia.

O cenário escolhido do filme é um lugar conhecido dos irmãos Coen. O meio-oeste americano no seu rigoroso inverno ganha contornos precisos nas mãos de Deakins: ao percorrer Fargo, Brainerd e Minneapolis, as imagens brancas e vazias integram muito bem a linguagem narrativa.

A trama segue Jerry Lundergaard (William H. Macy), gerente de vendas em uma revendedora de veículos localizada em Minneapolis, Minnesota. Perto da falência e desesperado por dinheiro, o vendedor elabora o plano de contratar dois marginais, vividos por Steve Buscemi e Peter Stormare, para forjar o sequestro da própria esposa e, então, receber a gorda recompensa do seu sogro rico. Contudo, o plano foge completamente do esperado findando em acontecimentos imprevisíveis que causam mortes em série. Quando o esquema principia a sucessão de incidentes na jurisdição da chefe de polícia grávida, Marge Gunderson (Frances McDormand), ela passa a investigar o caso sem saber da conexão entres as mortes e outros eventos trágicos que continuam a acontecer até o final da sequência.


NARRATIVA INCOMUM

O filme acontece de forma linear, quase em capítulos. Primeiro somos introduzidos ao cenário e apresentados aos personagens que motivam a trama: Jerry e os criminosos. Em seguida, acompanhamos o princípio do desenvolvimento dessa motivação e só então conhecermos à personagem chave: a chefe de polícia Marge. Na contramão do que Hollywood faz com seus grandes protagonistas, a figura interpretada por Frances aparece só depois de passado 1/3 da sequência. O que talvez não funcionasse em qualquer outra projeção, aqui trabalha muito bem e é exatamente o que a trama pede, traduzindo a extrema qualidade do roteiro.

A primeira interação de personagens estabelece bem a proposta do filme.

O gerente de vendas Jerry chega a um bar para encontrar os sujeitos responsáveis pelo sequestro da sua mulher: o falante Carl e o quase inexpressivo Gaear. O diálogo inicial sobre o gerente estar atrasado ou não para o encontro instiga o espectador em saber qual a relevância dessa conversa no enredo, mas a fala pontua exatamente o que se pode esperar. Os personagens reduzidos à trivialidade do homem. Em contraponto a outras obras do gênero policial, o enredo faz questão de colocar os criminosos como pessoas comuns sem qualquer genialidade.

Completamente diferente da construção comum feita em outras produções, na qual quase todo mundo é dotado de certa superioridade física ou intelectual, aqui os protagonistas seguem outra concepção. A chefe grávida da polícia local, onde em uma cena ou outra aparece comendo fastfood, mas ainda assim é a figura respeitada no trabalho e pelo marido. O personagem de William H. Macy, um cidadão comum perdido nas próprias escolhas, porém vazio e covarde, que consegue ser mais desprezível pela sua dissimulação e estupidez que os dois marginais autores diretos dos crimes brutais. Verdadeira síntese da sociedade.


ERROS, SOTAQUES, REAL E PERSONAGENS: MARCAS DE “FARGO”

Como o subtítulo em português sugere, a trama sucede por uma série de erros provenientes das ações dos personagens. As eventualidades e reviravoltas contidas no texto é algo comum nos trabalhos de Joel e Ethan. “Fargo” é o exemplo mais claro e próspero disso. A aparente certeza das ações e reações é presente na lógica dos personagens, mas o que toma domínio no desenrolar da sequência é a trajetória dos acontecimentos e seus desencontros. Na comédia não existem garantias, nada é linear, a cadeia de erros à qual provoca infortúnios acontece por equívocos inevitáveis das atitudes dos indivíduos. A falta de poder humano frente ao inesperado é voraz, mas não deixa de estar em sintonia com a lógica e coerência da vida.

Um dos principais componentes da obra que acaba se constituindo como um dos protagonistas é o forte sotaque nortista dos personagens. Elemento esse também muito presente na filmografia de Joel e Ethan, as expressões regionais e os exageros propositais se comunicam intimamente com o aquilo que o filme quer contar. Aliado a isso está a expressão física de cada personagem, seus trejeitos e maneirismos típicos de Minnesota só enfatizam a importância da linguagem ao contar a história. A frase “yah, you betcha” ou simplesmente “yah” depois de repetidas tantas vezes no longa, há quem diga que a expressão aparece quase 200 vezes nos diálogos, se tornou umas das referências mais fortes da comédia policial.

Outro ponto marcante do longa é a clássica abertura que reivindica se tratar de uma obra baseada em uma história real: “Esta é uma história verídica. Os eventos descritos neste filme ocorreram em Minnesota em 1987. A pedido dos sobreviventes, os nomes foram alterados. Por respeito aos mortos, o resto foi contado exatamente como aconteceu”. A crítica especializada entendia o texto como um recurso utilizado para gerar certo estímulo e atmosfera para o que espectador iria assistir.

Entretanto, no ano em que a película completou 20 anos, Joel e Ethan Coen explicaram em entrevista ao The Huffington Post que a motivação de iniciar a sequência com o aviso nasceu da vontade de fazer um filme que fosse ‘apenas’ no gênero história real, sem necessariamente ter uma narrativa verdadeira para isso. Mas confirmaram de fato existir dois elementos verídicos na criação da obra: um homem entre as décadas de 60 e 70 envolvido em um sistema de fraudes onde adulterava chassis de carros. O outro acontecimento, um assassinato onde um homem matou a esposa e a colocou em um triturador de madeiras. Nada além disso, o poderoso roteiro foi todo criado pelos irmãos, tanto é que levou o maior prêmio de roteiro do cinema.

O trunfo do filme é o fato de nada ser desperdiçado na narrativa: cada diálogo, cena e acontecimento tem seu propósito e significado no desenvolvimento da história. O espectador recebe exatamente aquilo que precisa para acompanhar e entender o que é contado.

A cena em que Marge recebe a ligação do ex-colega/namorado e, consequentemente, o encontra em um bar, parece não ter qualquer importância para o enredo, mas é essencial na estruturação da personagem, aquela figura respeitada e justa cedendo ao momento vil. Esse é outro ponto que justifica o êxito de “Fargo”: a construção minuciosa e redonda dos personagens. Cada um exerce seu papel na trama e se apresenta de forma singular e plausível.


O LEGADO DO FILME

Tamanho é o marco de “Fargo” no cinema hollywoodiano que, em 2012, os irmãos Coen e o canal FX começaram a produzir uma série televisiva baseada no seu grande sucesso de 1996, e de toda carreia. A série com já três temporadas lançadas e disponíveis no Netflix, além de uma quarta temporada confirmada para 2019, é outro projeto notável e premiado na trajetória deles. Apesar de trama da produção para televisão não seguir exatamente o enredo do seu precursor, a premissa e o campo de ação são os mesmos. Trabalhada em referências e até ligações diretas com longa de origem, a série bebe diretamente da fonte, referencia e se inspira não só nessa projeção em especifico, mas em toda filmografia de Joel e Ethan, reverência justíssima.

“Fargo” condensa quase todos os elementos muito característicos das produções dos Irmãos Coen, desde o tão marcante humor ácido, até a exposição da sociedade estadunidense. Os cineastas imprimiram uma assinatura única nos seus trabalhos.

É por isso que o merece o tratamento como novo clássico, não só pelo seu sucesso comercial depois de alguns fracassos de bilheteria e por ser um longa sem excessos ou sobras, na medida certa, mas sim por se tratar da confirmação do nascimento de uma carreira sólida marcada por roteiros e direção destoantes, porém sintetiza com fineza aquilo que faz o realizador e a singularidade das suas obras.

* Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.