Na Manaus da década de 1960, o cineclubismo se configurou como um importante pólo de agitação cultural, a partir do qual os jovens cinéfilos da cidade se lançaram a outras iniciativas ligadas ao cinema. Podemos dizer que nessa década começou a se esboçar uma cultura cinematográfica na cidade, com atividades conduzidas em diferentes frentes: da produção fílmica propriamente, passando pelas críticas publicadas em jornais da cidade até chegar a iniciativas do poder público.

Com o golpe militar de 1964 o então governador do estado, Plínio de Ramos Coelho, foi afastado sendo indicado para o seu lugar o historiador Arthur Cezar Ferreira Reis, que governou o Amazonas até 1967. Ferreira Reis foi um importante intelectual e, por mais contraditório que este fato possa ser em relação ao governo militar, no Amazonas as artes e as manifestações culturais foram apoiadas. Segundo contam participantes do Grupo de Estudos Cinematográficos – GEC, em algumas sessões promovidas pelo Grupo, o governador teria participado dos debates posteriores aos filmes. Cabe lembrar que em sua fase inicial as sessões do GEC ocorriam no auditório do Palácio dos Rodoviários, então moradia do governador do Estado.

Nesse período eram comuns os cinejornais, produzidos para serem exibidos antes das sessões principais nas salas comerciais de cinema. No Amazonas, o governo do estado contava com os serviços da empresa J. Borges Filmes para produzir material de divulgação das suas atividades e se ocupar da sua distribuição nas salas de cinema ao redor do Brasil. Ao que tudo indica, a empresa pretendia expandir suas atividades ao redor do Brasil a partir do trabalho desenvolvido no estado. Por iniciativa dessa empresa se organizou em 1966 o I Festival de Cinema Amador do Amazonas.

A empresa procurou Ivens Lima para que este organizasse o Festival. Lima, que era um importante agitador do movimento cineclubista na cidade, esteve mais envolvido nas fase inicial de elaboração do Festival, quando conseguiu o apoio do Clube da Madrugada, do qual fazia parte, do jornal A Crítica e da Rádio Rio Mar, onde produzia o programa Cinemascope no Ar. Além de articular essas importantes parcerias, ele iniciou a produção de um curta-metragem, que seria um dos concorrentes no Festival.

O Festival teve caráter competitivo e os filmes participantes foram: Igual a mim, igual a ti, de Roberto Kahané e Felipe Lindoso; Grande Enchente, de Guilherme Santos; I Festival de teatro amador, de Salim Kahané; Plástica e movimento, de Roberto Kahané, Felipe Lindoso, Raimundo Feitosa e Aldísio Filgueiras; Harmonia dos contrastes, de Ivens Lima; Um pintor amazonense, de Roberto Kahané e Felipe Lindoso e Carniça, de Normandy Litaiff. O júri foi composto pelos críticos amazonenses Luís Ruas e José Gaspar e pelos jornalistas Madalena de Almeida, do Jornal do Brasil, e Décio Luiz, representante da empresa J.Borges. Os filmes foram projetados no auditório Alberto Rangel, na Biblioteca Pública do Estado do Amazonas, do dia 17 ao dia 20 de novembro. No dia 21 foi realizada uma sessão especial no Cine Avenida, onde foram anunciados os vencedores. No dia seguinte, 22, foi realizada uma sessão a céu aberto, na praça Heliodoro Balbi, conhecida como praça da Polícia. Foram premiados os filmes Carniça, com o primeiro lugar; Um pintor amazonense, com o segundo lugar; e Harmonia dos contrastes, com o terceiro lugar.


Frame do curta-metragem Um pintor amazonense (Roberto Kahané e Felipe Lindoso, 1966)

Aparentemente o Festival ganhou proporções maiores do que as imaginadas inicialmente pela empresa J. Borges e seu resultado foi motivo de controvérsias e polêmicas. O evento serviu para estimular a produção de filmes na cidade, reunindo um pequeno conjunto de curtas-metragens que demonstra a diversidade de interesses ao redor do cinema naquele momento em Manaus. Entre os diretores temos um participante ativo do movimento cineclubista, que é o caso de Ivens Lima; um entusiasta de um cinema de caráter mais doméstico, como é o caso de Salim Kahané (pai de Roberto Kahané); jovens diretores sintonizados com o cinema moderno do período, como é o caso do grupo composto por Roberto Kahané, Felipe Lindoso, Raimundo Feitosa e Aldisio Filgueiras; um fotógrafo profissional, no caso de Normandy Litaiff e até mesmo o filho de Silvino Santos – importante cineasta brasileiro do período do cinema silencioso que vivia em Manaus – Guilherme Santos. Trata-se de um conjunto de diretores bastante diversificado, com origens sociais e interesses bastante distintos, situados em diferentes faixas etárias, e com posicionamentos políticos diferentes.

A principal controvérsia do Festival girou em torno da premiação. Segundo relatos presentes no livro A tônica da descontinuidade – cinema e política em Manaus nos anos 60, de autoria de Narciso Lobo, e também de relatos em entrevistas para a pesquisa que dá origem a esta coluna, a sequência dos premiados causou certo desconforto entre os diretores. São filmes de propostas bastante diferentes entre si, tanto estetica quanto formalmente. O filme de Kahané e Lindoso é tecnicamente mais bem acabado, por ser colorido e sonoro, apesar de ter sido filmado em bitola de super 8 mm, algo que o prejudicava nas possibilidades de projeção, sobretudo na dificuldade em amplificar o som, fato que motivou a decisão dos diretores em não autorizar sua exibição a céu aberto na praça Heliodoro Balbi. Carniça, de Normandy Litaiff, e Harmonia dos contrastes, de Ivens Lima, foram realizados em bitola de 16 mm, em preto e branco e sem som. Apesar de silenciosos, estavam na bitola adequada para a projeção disponível nas salas, com um impacto visual maior. Destes últimos, Harmonia dos contrastes é uma experiência visual sobre polaridades e contrastes expressos pelas mãos, filmado com planos curtos e decupagem cuidadosa. Carniça, por sua vez, é um filme mais impactante, com imagens duras de uma realidade social de baixa renda, onde homens disputam os restos de comida com os urubus.


Frame do curta-metragem Harmonia dos contraste (Ivens Lima, 1966)

O Festival foi uma importante iniciativa para que a produção de cinema que estava em gestação a partir do circuito cineclubista pudesse ganhar corpo. Outros membros do GEC já tinham iniciado produções, como era o caso de Márcio Souza, com um filme de animação inspirado nas técnicas de Norman Maclaren, intitulado Rapsódia incoerente (1965) e o filme Riscos (1965), de Geraldo Russo, ambos realizados sem câmera, apenas intervindo diretamente sobre a película. Porém, é importante notar como, para além de grupos de interesse mais específico, como os reunidos nas sessões do GEC ou do Cineclube do colégio Dom Bosco, o Festival trouxe à luz filmes vindos de origens inesperadas, como é o caso do filme Carniça, de Normandy Litaiff. Além disso, podemos notar como a questão técnica começa a se evidenciar. Temos a organização em diferentes grupos, como o dos jovens Kahané, Lindoso, Feitosa e Filgueiras, que tinham acesso a equipamentos mais modernos, patrimônio de Salim Kahané, um entusiasta do cinema e ele próprio ativo em filmagens em âmbito mais social e privado do que público. Por outro lado, notamos a importante atuação de técnicos com Cesídio Barbosa, com experiência consolidada na fotografia, que trabalhou em diversos filmes, se revezando entre a filmagem, a revelação e a montagem, permitindo que diversas produções pudessem efetivamente acontecer na cidade.

Outro ponto a considerar é como um Festival iniciado por interesses mais associados a propaganda, motivação maior da empresa J.Borges, principal promotora do Festival, acaba por dar a ver filmes surpreendentes que fogem completamente desse domínio. Ao invés de se mostrar o Amazonas como uma lugar de natureza exuberante ou um cenário atraente o filme revela os escombros de uma realidade social periférica e dramática. Em plena ditadura militar, que conduzia projetos intervencionistas na região amazônica e a considerava como área de segurança nacional, ignorando completamente sua realidade sociocultural, um pequeno festival de cinema amador regional premia em primeiro lugar um filme que revela exatamente o oposto desse discurso, aspectos da miséria e da tragédia humanas existentes em uma realidade de necessidades materiais e carências diversas.


Frame do curta-metragem Carniça (Normandy Litaiff, 1966)

Em nossa próxima coluna analisaremos mais detidamente os três filmes vencedores do I Festival de Cinema Amador do Amazonas.