Uma das principais revelações a surgir no cenário cinematográfico amazonense nos últimos anos, Francis Madson pode lançar o aguardado sucessor de Jardim de Percevejos (2013) daqui a um mês – ou não.

Rodado em parceria com o núcleo Artrupe Produções, o curta, intitulado No Céu da Boca Cresceu Saturno, “fugiu” às mãos do diretor. As filmagens feitas em maio foram rápidas, mas o processo de pós-produção, onde Madson optou por fazer uma exploração criativa e radical da edição (dois termos, aliás, muito caros ao cineasta) foi longo e insatisfatório.

Nesta entrevista, ele fala sobre a frustração com o projeto, a possibilidade – ou não – de fazer outros filmes, e sobre o que lhe atraiu do teatro, onde é considerado um dos maiores talentos do cenário amazonense, para o mundo das imagens em movimento.

Confira agora a conversa:

Cine Set: No Céu da Boca Cresceu Saturno é sua segunda incursão pelo cinema. Para você, que é tido como um nome do teatro, gostaria de saber se os filmes também fazem parte da sua formação, ou se é um caminho que surgiu agora e você está interessado em explorar.

Francis Madson: O cinema apareceu de uma maneira inusitada na minha vida. Meu filme nasceu de um projeto pro Até o Tucupi (festival realizado pelo Coletivo Difusão, núcleo de artistas de Manaus que estimula produções em diversos segmentos). Escrevi o roteiro, e ele foi premiado no edital deles. Na minha cabeça, eu não iria dirigir o filme, seria só um roteiro, mas fui “empurrado” pra direção, e acabei me interessando pela experiência. Tive que correr atrás, e buscar nas minhas referências anteriores, na minha formação em teatro, dança, os elementos pra criar esse trabalho. A questão passou a ser, então, como pensar a história em imagens, e esse desafio acabou me estimulando bastante. Mas esse lado, o do “cineasta”, com aspas, ainda está em construção.

Cine Set: O filme é uma parceria com o núcleo Artrupe, de obras como A Segunda Balada. Como surgiu essa aproximação pra fazer o filme, já que Jardim foi todo rodado com uma equipe que você mesmo montou?

Madson: Eu pensei esse projeto como uma espécie de troca, um acordo entre artistas. Tenho um trabalho que interessa muito a eles, um texto meu que eles querem fazer, e em troca eles cuidam de toda a parte técnica do filme. Temos dois curtas pra fazer juntos: o primeiro foi o Saturno, e outro se chama Descafuçuzado. Esse próximo curta surge desse sistema.

Cine Set: Como é o seu processo criativo ao trabalhar com filmes? Há algum paralelo com o processo no teatro?

Madson: Penso muito sobre a maneira como posso abordar essas histórias, esses personagens – no caso, até aqui eles são “a-personagens”, figuras intencionalmente desumanizadas. No Jardim, por exemplo, o protagonista não tem rosto, ou melhor, é um rosto transfigurado, pode ser de um inseto, outros podem ver como um porco. Essa é a maneira como quero que o ator apareça, criando um efeito de distanciamento em relação à ficção, você não se identifica, aquilo incomoda. No Saturno também, em nenhum momento o rosto dos atores é revelado. Esse é um dos pontos que trabalho nas minhas histórias.

O outro é tentar fazer com que elas sejam as mais radicais possíveis. O Jardim tem um protagonista que é um homem “híbrido”, quase como um ciborgue, só que, no caso, totalmente orgânico, mas ainda assim inumano, inserido nesse universo do comum, da rotina, dos relacionamentos. No Saturno, me inspirei na pintura de Goya, de Saturno devorando os próprios filhos, pra falar de uma mulher urbana contemporânea, que é totalmente doente, só se sente feliz ao lado do homem, e por isso não quer ter filhos. Ela começar a ir abortando os filhos deles, e não só isso, ela também os come. O filme fala dessa relação doentia, e sobre a maternidade. Sempre estou pensando em histórias mais radicais, não necessariamente inovadoras, mas que perseguem esse elemento estranho, essa outra maneira de se abordar as coisas: uma outra voz.

Cine Set: Gostaria de saber se as filmagens de Saturno foram tranquilas, ou se deram muito trabalho. E, em relação a Jardim, se foram mais fáceis ou difíceis.

Madson: Olha, eu tive problemas com as duas. No caso do primeiro filme, a dificuldade foi fazer com que a equipe entendesse a proposta, que eu estava buscando essa “outra voz”. As filmagens em si foram super práticas, já que tínhamos um prazo pra entregar o trabalho, ele estava comprometido com o evento do Difusão. Agora, essa maneira de trabalhar, com prazo, tendo que ser rápido, me agrada, já que estou acostumado a fazer as coisas desse jeito.

Já o Saturno foi muito dilatado, por diversas razões pessoais e profissionais. Eu precisei viajar muito, a Artrupe estava envolvida com outros projetos. E esse modo de fazer as coisas, ficar debruçado tempo demais sobre um trabalho, não me interessa. Pelo menos, não agora, quando estou vivendo uma efervescência criativa, e quero experimentar coisas novas, novas linguagens. Eu já queria estar fazendo meu terceiro ou quarto curta se tivesse uma equipe própria, mas infelizmente não tenho.

Pretendo finalizar o Saturno nas próximas duas semanas. Por mim, eu já teria desistido desse projeto, já que não tenho problemas quanto a desistir quando algo que imaginei não está funcionando. O Saturno já foi tão montado e remontado, já foi afetado de tantas maneiras que a espinha dorsal do filme se fragilizou. Depois de tudo isso, é um filme que acho que já nasce morto.

Cine Set: Bom, diante disso, você pretende continuar a fazer filmes? Há outros projetos que você considera, outros curtas?

Madson: Quero fazer mais dois curtas. Tenho um chamado Miragem, que quero fazer antes do Descafuçuzado. Ele vai ser gravado todo em dispositivos móveis – celulares, tablets, câmeras portáteis. É a história de um menino que quer virar peixe. Só vou fazer o outro se surgir a oportunidade de ter incentivo do governo ou da prefeitura.

Cine Set: Você tem formação em dança. Tem vontade de criar projetos explorando a linguagem da videodança, ou videoarte?

Madson: Não, agora não. Manaus é uma das grandes produtoras de videodança, o primeiro roteiro que eu criei, em 2008, foi pra um projeto de videodança, que se chamava – se chama – Enterra Guarda-Chuva, que eu nunca pus pra ser executado, mas hoje não me interessa muito. O que me preocupa, agora, é pensar o cinema que faço. Tenho vontade, por exemplo, de daqui a cinco anos fazer um longa. Também penso em fazer um documentário no ano que vem, sobre os soldados da borracha. Esse é um projeto em que posso adotar uma estética de videoarte. Não quero fazer uma obra “rígida”, quero deixar o filme o mais poético e vibrante possível. Mas esse também é um caso em que só com um edital de financiamento seria possível, porque preciso de dinheiro pra ir às cidades que vou mostrar no filme.

Cine Set: Queria saber também se você acompanha o cinema, e quais são os nomes que você admira nessa arte.

Madson: Bom, tem pessoas cujas obras me interessam. Aqui em Manaus, os trabalhos da Keila Serruya me mobilizam, o último filme do Diego Bauer (O Que Não Te Disse, 2014), o trabalho do Sávio Stocco em videoarte também. No Brasil, o modo como o diretor do Praia do Futuro (Karim Aïnouz) constrói a narrativa no filme me interessa muito, muito mesmo. Um que sempre me interessou, cujos textos, as obras, sempre me atraíram é o Bergman (Ingmar Bergman, diretor sueco, 1918-2007). Outro que gosto, mas mais os filmes da primeira fase, é Woody Allen, aquela parte da obra dele mais influenciada pelo Bergman, os filmes em preto-e-branco.

O que me interessa mais no cinema é a narrativa. A forma como determinado diretor constrói a narrativa, mas, especialmente, quando ele radicaliza na forma de criar e contar uma história. Se o filme me deixa desconfortável, isso me interessa, porque me faz querer explorar aquela obra. Pra mim, assistir um filme é um exercício de exploração. E eu tento naturalmente pensar a minha produção dessa forma. Mobilizar o outro através do choque, do desconforto, instigar a exploração das imagens, dos significados. É isso que me interessa.