Cercado de controvérsia desde o anúncio de sua produção, A Garota Dinamarquesa afinal chega a Manaus, com quatro indicações ao Oscar (Ator, para Eddie Redmayne, Atriz, para Alicia Vikander, Direção de Arte e Figurino) e a distinção de ser, até aqui, o filme mais premiado a tratar de questões de gênero e identidade sexual. A expectativa, portanto, era que, para além da qualidade do filme, o longa também fosse verdadeiro, fizesse jus a toda a complexidade do assunto, sem escorregar em simplificações grosseiras, em estereótipo dos dilemas e gestos de sua protagonista transexual.

Curiosamente, é a vontade de tornar crível e denso o drama do pintor Einar Wegener (Redmayne, vencedor do Oscar em 2015 por A Teoria de Tudo) em sua reinvenção de si mesmo como Lili Elbe, o que mais atrapalha A Garota Dinamarquesa. Todas as etapas, até a decisão de fazer a cirurgia de mudança de sexo (o filme apregoa tratar do primeiro caso do tipo no mundo, mas uma transexual alemã, por volta da mesma época – 1931 –, foi de fato a primeira a atravessar com sucesso o procedimento), repassam de forma didática e reiterativa demais as dificuldades de Lili em conhecer e aceitar a si própria.

Não que elas não tenham existido – e imagine o suplício de não reconhecer-se mais no próprio corpo na pudica e inexperiente década de 1920, quando a homossexualidade (ou, para a época, sodomia) ainda era considerada crime em boa parte da Europa, e o travestismo (palavra tão feia para uma arte do corpo e da beleza) ou a transexualidade, perversões tratáveis com radioatividade e choques elétricos (que coisa: de repente, 2016 me pareceu igualmente pudico, inexperiente – e trágico – na maior parte do mundo. O Congresso brasileiro não tem um projeto de “cura gay”?). É que soam simplesmente “corretas” demais certas cenas e diálogos, como quando Lili pede ao médico benevolente que a faça “completa”, ou quando Gerda (Vikander) apoia o marido de forma abnegada, quase uma mártir, contra todas as frustrações do casamento.

Mas, onde a trama romanceada falha, os atores conseguem produzir nuance e a comoção verdadeiras. Redmayne e Vikander – com um aceno do sempre sensível e eficiente Ben Whishaw – funcionam às maravilhas juntos. Ele, aqui, finalmente prova o grande ator que é, para quem ainda duvidava do prodígio de sutileza e caracterização que foi seu Stephen Hawking em A Teoria de Tudo (2014). Com a mesma economia de expressões e gestos, o jeito manso de falar, e uma compreensão íntima de sua personagem, Eddie consegue redimir as falas mais gastas, e emociona com sua altivez polida, mas dilacerada por dentro. Já o rosto luminoso de Alicia, no cartaz do filme, diz tudo: ela é toda fogo e expansividade, contra o jeito travado e tenso de Einar.

A (para cunhar uma frase original) extraordinária riqueza de matizes na sua interpretação de Gerda não é nenhuma surpresa para quem já vinha acompanhando a atriz, sobretudo a partir de Ex Machina: Instinto Artificial (2015), que também lhe trouxe uma indicação ao Oscar. No início, a maior encorajadora do marido, Gerda experimenta o choque com a transformação de Einar, o fim do desejo sexual, e até sua tentativa de esquecer o passado como homem, sem deixar de amá-lo ou de tentar compreender sua “condição”. Um trabalho que muitas veteranas talentosas não saberiam encarar com tamanha graça e sensibilidade.

O saldo, para o diretor Tom Hooper, é positivo: depois da grandiloquência de Os Miseráveis (2012), que só foi salvo da caricatura por seu obstinado elenco (com o mesmo Redmayne), ele reencontra a verve de storyteller vista em O Discurso do Rei (2010), que pode ter desagradado a muita gente, mas que, para mim, é sempre um prazer de assistir. Apesar da tentativa de tornar a história de Lili Elbe mais certinha e agradável que o desejado, a presença de Redmayne e Vikander em cena faz A Garota Dinamarquesa, às vezes, tanger o sublime de uma canção de Antony Hegarty. Pena que, na maior parte do tempo, as paisagens e figurinos (um primor, é justo dizer) são apenas plácidos, e as falas, tão “do bem”.