Hayao Miyazaki, com apenas quatro anos, foge com a família do distrito de Bunkyō, em Tóquio, onde nasceu, por causa da chuva de bombas que devasta o Japão. Seu pai, um rico fabricante de peças para aviões, é um dos poucos na localidade a conseguir financiar a fuga, e, no caminho, abandona vários vizinhos e conhecidos à própria sorte, mesmo tendo espaço no veículo para mais gente. De madrugada, o céu se enche de cores, com as enormes bolas de fogo e fumaça provocadas pelos bombardeios aliados.

Conheça a carreira do mestre da animação oriental

As experiências de infância de Miyazaki, animador que ganhou o epíteto de “Disney japonês” devido à qualidade e popularidade de seus filmes, seriam uma inspiração permanente para sua carreira, marcada por obras encantadoras, de visual meticuloso, e por valores como o humanismo, a defesa das mulheres, da natureza e o apelo ao fim das guerras.

Temas que soam pesados para a animação, um gênero associado a obras infantis, agradáveis, onde todo conflito é atenuado e verdades amargas são anátema. Talvez fosse assim no Ocidente, em que os valores conservadores dos Estados Unidos se impuseram como regra no gênero, mas no Japão a coisa é diferente. Com a aproximação crescente entre culturas, nos anos 1970, os países ocidentais descobriram, para espanto e deboche, as famosas imagens de executivos japoneses indo para o trabalho munidos de… gibis. Um indício importante da força da arte ilustrada na cultura local.

Enquanto aqui, no Brasil, e nos demais países sob a esfera de influência dos EUA, o Código de Produção, instituído em 1930 em Hollywood como forma de definir o que era apropriado ou não filmar, criou uma agenda anódina e sanitizada, o mangá (as histórias em quadrinhos japonesas) e o anime (os desenhos animados) nunca conheceram essas restrições. Guerra, thrillers sangrentos, contos eróticos e fantásticos, não havia tabu para a arte animada japonesa, e foi essa falta de restrições que tornou o gênero tão denso e maduro em tão pouco tempo, a ponto de seus temas parecerem anos-luz à frente da literatura e do cinema do país, bem mais “convencionais” por comparação.

O começo

A grande inspiração para Hayao Miyazaki, durante seus anos de formação, foi o mangá. A arte de mestres como Osamu Tezuka (Gen Pés Descalços) e Tetsuji Fukushima levou o garoto, que estava sendo preparado para a vida empresarial, como o pai, a se tornar desenhista. Sem conseguir emplacar uma história original (segundo ele próprio, devido à influência avassaladora de Tezuka, que o impedia de encontrar a própria voz), Miyazaki se juntou à equipe dos estúdios Toei, que lideravam o segmento de animes no início da década de 1960.

A chegada do novato causou um impacto instantâneo. O tenaz e engajado Miyazaki logo se tornaria o líder do sindicato dos animadores, negociando disputas por salário e direitos trabalhistas, e suas idéias criativas e ambiciosas elevariam o padrão das animações na empresa. Foi uma espiada em A Lenda da Serpente Branca (1958), considerado o primeiro anime em cores, que deu a Hayao a “liga” necessária para que suas próprias ideias florescessem. O animador se encantou com a heroína da história, e a característica central de seus trabalhos nas décadas seguintes seria justamente a força de suas personagens femininas, que sempre aparecem como as vozes da razão e sensatez, em meio a um mundo dominado pela estupidez e boçalidade dos homens.

lupin021Essa característica já é aparente em O Castelo de Cagliostro (1979), o primeiro trabalho dirigido pelo prodígio nipônico. Uma aventura do popular personagem Lupin III (segundo a história, neto do detetive Arsène Lupin, da série de romances de Maurice Leblanc), Castelo é uma trama agitada e nervosa, onde o protagonista tenta salvar Clarisse, a condessa de Cagliostro, cuja família guarda um segredo poderoso e sombrio. Com um roteiro brilhante, que arma um crescendo de situações aflitivas, e personagens muito bem caracterizados, o filme é um primeiro triunfo de Miyazaki, indicativo da carreira extraordinária do animador pelas próximas décadas.

Curiosidade à parte: a qualidade da estreia de Miyazaki fez com que a Disney, nos Estados Unidos, convidasse uma delegação de animadores japoneses para apresentar seu trabalho à equipe. Entre os presentes, estava John Lasseter, o fundador da Pixar e diretor de Toy Story (1995), que descreveu a experiência de ver Cagliostro como “transformadora”, e, já à frente da companhia, usaria sua influência no mundo da animação para divulgar os trabalhos do mestre japonês.

Apesar do sucesso de público, e das indicações a prêmios da indústria local, outros cinco anos se passariam até que Miyazaki tivesse um novo projeto exclusivamente seu em mãos.

Gênio a caminho

Resultado de ideias que ele vinha esboçando desde seus anos de mangaka aspirante, Nausicäa do Vale do Vento (1984) é o primeiro roteiro completamente original de Miyazaki, e um tour de force de história, personagens e visual, com temas que seriam revisitados durante toda a sua carreira posterior. Ambientado num futuro distante, mil anos após uma guerra entre a humanidade e a natureza que resultou na devastação do planeta, o filme coloca a personagem-título à frente de uma cruzada para impedir que os homens provoquem mais um conflito, que tem tudo para ser o seu último.

Menos uma defesa do meio ambiente do que um lamento desiludido pela insensatez humana, Nausicäa é o filme mais pessoal de Miyazaki, e provavelmente a sua obra-prima, o trabalho que resume e simboliza a sua filmografia. E, como tal, uma das maiores animações de todos os tempos, com sua concepção inovadora (preste atenção nos designs icônicos de aeronaves e criaturas, que influenciaram outros animes, filmes e até jogos de videogame mundo afora), seus personagens inesquecíveis, seu roteiro comovente. Desde o lançamento, o filme é presença obrigatória em listas de maiores animes da história, e seu sucesso nas bilheterias fez de Miyazaki o novo nome “quente” da indústria.

O estúdio Ghibli, quase sinônimo com o nome de Miyazaki, foi fundado em 1985 pelo diretor e seu parceiro na produtora TMS (a mesma de Cagliostro), Isao Takahata, para garantir controle criativo e um ambiente de trabalho mais favorável ao artista, cujo rigor e perfeccionismo (muito parecidos com os do protagonista de seu último filme, Vidas ao Vento, o projetista de aviões Jiro Horikoshi) não combinavam com o ritmo industrial da Toei.

A primeira produção da nova companhia, O Castelo no Céu (1986) confirmou o brilho de Miyazaki, e seu papel de líder na ascensão cultural do anime. Em meio a uma fase fantástica para o gênero – só na década de 80, tivemos maravilhas como Akira (1988), Macross (1984) e Cemitério dos Vagalumes (1988 – por sinal, do sócio de Miyazaki no estúdio, Isao Takahata), a obra de Hayao foi vista como a mais importante e culturalmente relevante, além de a primeira a ganhar repercussão no Ocidente. O filme conta a história de Pazu e Sheeta, duas crianças que se veem envolvidas numa trama de perseguição a uma fortaleza flutuante. Além do interesse óbvio da fantasia, o filme retoma a postura pacifista e feminista de Nausicäa, com duras críticas à ganância humana – em outras palavras, mais um show de roteiro e visuais, e mais uma dose de verdades amargas numa embalagem luminosa, para deslumbre das crianças e desconcerto dos adultos.

photoApós três tramas densas, ambiciosas e agitadas, Miyazaki decidiu voltar seu olhar para o mundo insular e delicado da infância. O resultado é um filme que só rivaliza com Nausicäa em impacto e importância na obra do diretor: Meu Amigo Totoro (1988, também disponível no país com o nome de Meu Vizinho Totoro). Lançado num histórico programa duplo com Cemitério dos Vagalumes, a obra-prima de Isao Takahata sobre a tragédia da guerra, Totoro vai numa direção completamente diferente para seu criador – abertamente infantil, sem ação, mas com a mesma beleza visual e maturidade de conteúdo tão características do artista. Desta vez, a trama narra a mudança de duas meninas, Satsuki e Mei, para o interior do Japão, a fim de ficarem mais perto da mãe, que tem uma doença grave. Enquanto elas se adaptam à nova rotina – e à dura realidade dos fatos –, as irmãs recebem a visita de Totoro, uma entidade mágica da floresta. Parecido com um gato gigante (e obeso), ele atenua as dores do dia-a-dia com suas aparições divertidas.

Talvez a qualidade mais superlativa do filme seja o modo mágico como ele retrata a infância. O tempo todo, vemos o mundo pelo olhar das meninas, e é o misto de fascinação e ansiedade que elas experimentam em cada fato corriqueiro, o que mais encanta na obra. Não se trata de uma visão “colorida”, açucarada, da vida dos pequenos – o tempo todo, o medo da ausência do pai, ou a sombra da doença da mãe, ameaçam destruir esse idílio – mas sim um retorno sublime a nossos próprios fascínios e temores dos primeiros anos. Outra masterpiece, mais uma joia para o catálogo crescente do “Disney japonês” (apelido que pretendo parar de usar por aqui, uma vez que Miyazaki, grande apreciador do americano, detesta a comparação).

O sucesso de Totoro (cujos temais mais “fáceis” agradaram em cheio ao grande público, salvando Cemitério dos Vagalumes do fiasco) fez o estúdio Ghibli começar a dar lucro, e a companhia passaria a abrigar alguns dos maiores animadores japoneses. Miyazaki diminuiu o ritmo de trabalho, lançando, pelos próximos três anos, dois filmes que, apesar de modestos na comparação com os anteriores, continuariam a enriquecer seu universo fílmico, e a desenvolver seus temas recorrentes: O Serviço de Entregas da Kiki (1989), história de uma aprendiz de bruxa adolescente, que precisa confrontar os dilemas do amadurecimento, e Porco Rosso (1992), nostálgico conto de um mundo em declínio (o dos glamourosos anos 1930, pré-Guerra, com suas disputas “galantes” entre cavalheiros), encarnado na figura do personagem-título, um aviador transformado em porco após um feitiço. Novamente, suas fixações de juventude – aviões, a Segunda Guerra, mulheres fortes, os deveres e responsabilidades da vida adulta – retornam, acrescidas de novos detalhes e um olhar cada vez mais lírico e melancólico.

Mas foi sua obra seguinte a responsável por colocar o nome de Miyazaki no circuito internacional. Princesa Mononoke (1997) seria um marco técnico (a primeira animação do Ghibli a empregar recursos de computação gráfica, em complemento aos belíssimos quadros pintados a mão), além de um estrondoso sucesso de público – até a chegada de Titanic, no mesmo ano, o filme foi a maior bilheteria da história do cinema japonês. O conteúdo estava à altura – a saga do príncipe Ashitaka e da guerreira San para conter a sanha guerreira e destruidora de Lady Eboshi, que entra em conflito com os deuses da floresta, comove e causa apreensão como pouquíssimos filmes live action, que dirá desenhos animados. Quase tão amarga quanto Nausicäa do Vale do Vento, e bem mais violenta – há cabeças cortadas, braços arrancados e sangue a granel –, a obra é mais uma poderosa condenação da guerra e da destruição do meio ambiente por Myiazaki, e seu filme mais “adulto” até a chegada de Vidas ao Vento (2013).

A produção trabalhosa – Miyazaki refez, ele próprio, cerca de 80 mil quadros da animação – levaria o diretor a afirmar que Mononoke seria seu projeto final. De fato, a obra marcou um espaçamento cada vez maior entre os trabalhos do mestre, mas, felizmente, ele não parou. Na verdade, ele iria ainda mais longe.

A consagração mundial

A-Viagem-de-ChihiroA Viagem de Chihiro (2001) marcou a consagração definitiva de Miyazaki, e tem a distinção de ser o único anime na história a conquistar o Oscar de Melhor Animação. Uma versão personalíssima do romance de formação, Chihiro relatas os apuros vividos pela protagonista, que acaba presa, vejam só, numa casa de banhos para espíritos (!), após seus pais se perderem numa estrada. Para poder se libertar, a mimada Chihiro precisa descobrir o próprio valor, mas as coisas não são tão simples como esta sinopse – na verdade, o número de referências a mitos e figuras tradicionais da iconografia japonesa é atordoante, e o resultado (os adjetivos estão acabando) é um verdadeiro deleite para os olhos.

Visual à parte, dada essa profusão de referências a figuras locais, o mais intrigante é que o filme tenha se tornado o sucesso global que acabou virando – é o recordista de bilheteria no cinema japonês, superando Titanic, e também a animação mais bem recebida de Miyazaki no exterior, com promoção massiva pela Disney, além do interesse trazido pelo Oscar. O filme mantém a altíssima média de beleza visual e riqueza de conteúdo do animador, e este escriba o recomenda sem ressalvas – as figuras tradicionais só contribuem para o fascínio da história, sem dificultar a compreensão do que se passa.

Após Chihiro, com a carreira coroada e uma das reputações mais ilustres do universo da animação, Miyazaki voltou a contemplar a aposentadoria. O mestre envelhecido, porém, ainda tinha algumas coisas a dizer.

Crepúsculo

windOs últimos filmes de Hayao Miyazaki são espécies de “palavras finais” sobre os temas que ocuparam o artista ao longo de sua trajetória. Com O Castelo Animado (2004), o diretor aposentado voltou à ativa, decidido a resgatar o projeto do cancelamento, após a saída do diretor original. A história de Sophie, uma chapeleira austera e reservada, e Howl, um mágico extravagante e vaidoso, retoma o espírito agitado de Cagliostro e o Castelo no Céu, com um olhar mais lírico e melancólico, além do inusitado de uma protagonista… idosa. Já Ponyo – Uma Amizade que Veio do Fundo do Mar (2008) pode ser considerado seu filme mais leve e animado, apesar dos tons de solidão e conflito que nunca deixam de aparecer em suas obras. Retorno ao universo infantil de Totoro, a trama narra o amor que surge entre a “peixinha” Ponyo, criada por um feiticeiro marítimo, e o garoto Sösuke, que a encontra perdida no oceano. Com inusitados ecos de óperas de Wagner – a criaturinha é originalmente chamada de Brunhilde, tal como a heroína de A Valquíria, e seu desafio às restrições do pai remete à mesma obra, citações amplificadas pela música de Joe Hisaishi –, o filme traz o belíssimo olhar do diretor sobre os mistérios do mar, com uma animação particularmente deslumbrante.

Seu projeto final, porém, encara o idealismo do passado de forma desencantada e triste. Vidas ao Vento (2013) é a nota outonal, crepuscular, de Miyazaki sobre o terror e a beleza evocados naquela noite de 1945. Biografia romanceada de Jiro Horikoshi, desenhista de aviões que criou os magníficos caças A6M Zero, responsáveis por sangrentos embates contra a frota americana na Segunda Guerra Mundial (seu pai fabricava peças para essas máquinas), o filme examina o preço da busca obcecada por um ideal, que rouba o melhor da vida e do casamento de Jiro, e a conformação de seus sonhos às vilezas humanas, que transformam seus exemplos de graça e beleza em eficientes máquinas de matar. Vidas ao Vento coroa a carreira do diretor com um roteiro extraordinário, além de alguns dos mais belos quadros já idealizados e animados pelo mestre.

Também representa, acima de tudo, um fecho à altura da magnífica coleção de histórias e imagens, sempre novas, sempre ricas de significados, realistas e fantasiosas, sombrias e esperançosas, de um dos verdadeiros poetas da animação neste século. Conheça – e se apaixone por – Hayao Miyazaki.

Uma nota pessoal: se este texto parece marcado pela admiração incondicional do diretor, faço aqui um despudorado mea-culpa. Tendo descoberto por puro acaso, através do presente de uma farmácia da qual minha família era cliente, uma fita (estamos no tempo do cassete) contendo ‘Totoro’, e tido o privilégio de conhecer e me apaixonar por essa obra ainda na infância, só posso registrar, amorosamente, a gratidão por tudo que Hayao Miyazaki me permitiu conhecer, sentir e vivenciar, em tantas manhãs de encantamento, fixando cada detalhe desse belíssimo filme. Mas tenho certeza de que, se nunca tivesse ouvido falar nele, a admiração por seus trabalhos seria igual. Se estas palavras falharem, milhões de fãs ao redor do mundo serão unânimes – e convincentes – em afirmar a grandeza do mestre. A Hayao Miyazaki, meu mais sincero obrigado.