Se o termo “filme nacional” já é algo capaz de causar injustificada ojeriza a uma parcela dos espectadores brasileiros, o que dizer daquelas produções que há décadas foram enquadradas no subgênero da “pornochanchada”? Com proposta ensaística, o documentário de Fernanda Pessoa foca justamente nesses filmes para falar de algo que, a princípio, não poderia estar mais longe do universo quase grotesco de tais obras: o período da ditadura militar no Brasil.

Assim, Histórias que nosso cinema (não) contava (2017) resgata uma boa parte dessa página da produção nacional. Para tanto, apropria-se das imagens das pornochanchadas produzidas principalmente nos anos 1970, cobrindo o período do AI-5 – tido como o mais rígido em termos de cerceamento de liberdade dos cidadãos e poder absoluto ao governo brasileiro.

Sobre a montagem e o tempo

A estrutura fílmica proposta por Pessoa em montagem ágil garante um retrato digno de qualquer boa discussão sobre a história do país. Mesmo quando expõe as piadas de baixo calão ou o sexo que objetifica especialmente a mulher, presente em várias das obras pinceladas pelo documentário, ficam latentes temas e mentalidades que marcaram a época da ditadura, tais como o entendimento do progresso atrelado à inserção do país “terceiromundista” no modus operandi do capitalismo gringo – e o conseqüente temor ao comunismo –, a urbanização e o impacto da industrialização no povo do campo, a profunda desigualdade social causada por esse processo, a liberação sexual e o uso de drogas, dentre outros pontos.

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Sendo basicamente um documentário de imagens de arquivo, Histórias que nosso cinema (não) contava consegue ainda assim apresentar uma voz própria e de asserções bem delimitadas. Nesse sentido, ele se assemelha a outros filmes-ensaio, como o excelente “Yndio do Brasil” (1995, Sylvio Black). Sem optar por guias autoexplicativas como o a narração em off, uma das leituras possíveis da obra para quem lembra das aulas de história da escola ou se interessa um pouco mais sobre o assunto aponta justamente para uma crítica aos valores defendidos pelo regime militar em seu discurso de progresso, moral e bons costumes.

Com essa proposta, são vários os momentos em que imagens como as de cenas despudoradas de sexo ganham novas camadas de significado. Elas se apresentam como alternativa de expressão num contexto de controle e censura, como se fossem políticas em sua essência, embora aparentemente apolíticas em sua crueza. De quebra, o filme de tom crítico é uma indireta ode à necessidade de preservação de nossa filmografia, pois valoriza os subtextos das pornochanchadas, mostrando ao público de hoje a relevância dessas obras, ao passo que resgata imagens que claramente já sofreram certa deteriorização natural pela ação do tempo.

Este é um país que vai pra frente!

Outro tema que permeia o filme de Pessoa são as representações de prosperidade econômica, mostradas não apenas de forma esperançosa nas “comédias bobas” que servem de base para Histórias que nosso cinema (não) contava. Há nas cenas escolhidas também o cinismo e a noção sempre latente do país como nação subdesenvolvida, precária em tantos aspectos mesmo num momento de aparente boom econômico. É possível observar um tom crítico a esses valores quando Pessoa foca em elementos recorrentes das pornochanchadas – como, por exemplo, a figura do “malandro”, sempre tentando se dar bem a partir do prejuízo a outrem –, relacionando-os à hipocrisia do discurso da época.

Relações de poder desiguais também são colocadas por Pessoa quando ela trava o paralelo indireto entre o regime cada vez mais fechado e a representação das diferentes classes econômicas. Assim, as figuras dos subordinados às elites – peões, empregadas domésticas, emigrantes – são brutalmente explorados mesmo no absurdo das tramas das pornochanchada, inseridas por vezes no contexto do “milagre econômico” que fez cidades como São Paulo se desenvolverem, gerando, por sua vez, êxodo rural em regiões como o Nordeste. Não raro, a figura da moça ou rapaz vindos do interior se tornam fetiches nessas comédias.

Esse ponto, aliás, é digno de nota no que diz respeito à forma como Pessoa traz a imagem da mulher nas pornochanchadas e a atrela ao contexto histórico das produções. A diretora frisa bastante a exposição do corpo nu da mulher, outro item essencial que caracterizou os filmes da época, mas, tal como faz com todas as cenas que aparecem em Histórias que nosso cinema (não) contava, a nudez e o sexo são entendidas para além de sua superfície.

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No documentário, a mulher puramente objetificada é mostrada de forma crítica, fazendo-nos pensar no sexismo da situação, e não puramente em como essa imagem pode gerar desejo, graças ao encadeamento inteligente das imagens. Em outros momentos, o nu ou a devassidão sexual se mostram como tentativa de expressar uma liberdade que, para além da tela do cinema, foi tirada do espectador na época. E, por fim, dadas cenas trazem mulheres objetificando a si mesmas, como quando foca no universo da prostituição, em busca de ganharem algo com isso e participarem, ainda que de forma marginal, do tal milagre econômico.

O feminismo e a questão da mulher negra também são pontuadas com destaque no longa. Isso contribui para que o filme saia de lugares-comuns e construa asserções ricas em sua reconstrução da história a partir das pornochanchadas. Assim, o documentário nos faz questionar quando o sexo age como alternativa subversiva ou como instrumento de alienação social nesses filmes.

De certa forma, essa reflexão permeia todo o encadeamento de imagens de Histórias que nosso cinema (não) contava. É impossível não lançar um olhar crítico sobre o documentário e não observar que mesmo os filmes de tramas mais absurdas e precários em sua produção acabam dizendo algo sobre a política e a voz daqueles tempos. A passividade do brasileiro perante o AI-5, a presença de discursos político-ideológicos conservadores, o senso de comédia e espetáculo tomando conta dos filmes de sucesso quanto mais ferrenha se torna a ditadura até seu enfraquecimento e abertura nos anos 1980, tudo isso pode ser visto através das obras selecionadas por Pessoa para o documentário.

Histórias que nosso cinema (não) contava consegue, dessa maneira, elucidar ao espectador a relação entre filme e política, obra e contexto, texto e subtexto, cinema e entorno. É um filme que deve desagradar àqueles que acreditam ser possível separar tais elementos, além de ser um documentário que mostra a força do encadeamento de enunciados na construção de um discurso que, no caso da realidade brasileira, parece ser cada vez mais nebuloso: o da necessidade de olhar ao passado para aprender algo sobre o presente.