Há muito que se gostar em O Hobbit: A Desolação de Smaug, a segunda parte da nova trilogia do diretor Peter Jackson baseada no livro de J. R. R. Tolkien. O filme é um novo espetáculo visual da mesma equipe que criou a inesquecível trilogia O Senhor dos Anéis. Os atores estão todos ótimos, e pelo menos alguns deles se destacam pelo trabalho excepcional. E o roteiro se preocupa em desenvolver personagens e estabelecer situações, tendo todas as características de uma história bem contada. No entanto, mesmo com essas qualidades o filme não chega a ser uma grande experiência, principalmente porque o espectador não consegue afastar a sensação de que o contador da história está “enrolando”, estendendo desnecessariamente a trama.

Esta segunda parte continua acompanhando a jornada do hobbit Bilbo Bolseiro (Martin Freeman), do mago Gandalf (Ian McKellen) e da companhia dos 13 anões a caminho da Montanha Solitária, para recuperar o tesouro escondido lá. Ao longo da jornada, eles enfrentarão perigosas aranhas, se meterão numa encrenca com o rei élfico Thranduil (Lee Pace) e chegarão ao seu destino, desencadeando a fúria do dragão Smaug (dublado por Benedict Cumberbatch). No meio do caminho eles terão como aliados os elfos Legolas (Orlando Bloom, retornando ao papel de O Senhor dos Anéis) e Tauriel (Evangeline Lilly), e conhecerão Bard (Luke Evans), o aldeão de Esgaroth, a Cidade do Lago. Bard teme o despertar do dragão, mas ainda assim auxilia os heróis. Porém Gandalf abandona o grupo para confrontar o misterioso Necromante, e acaba se deparando com um antigo mal…

O Hobbit, o livro, é uma narrativa leve e com teor infantil que foi transformada por Jackson e seus co-roteiristas Fran Walsh, Phillipa Boyens e Guillermo Del Toro, num épico quase do mesmo escopo de O Senhor dos Anéis. Esta segunda parte cobre os capítulos do meio de O Hobbit e faz uso de elementos de outros escritos de Tolkien (notadamente os apêndices de O Senhor dos Anéis) para preencher lacunas na narrativa do livro. Pode-se dizer que nesta segunda parte “acontecem” mais coisas do que no primeiro da trilogia, Uma Jornada Inesperada (2012), e isso resulta numa experiência um pouco mais agitada, com inegáveis momentos de brilhantismo.

Por exemplo: um dos momentos mais incríveis da aventura é a engraçada sequência da fuga dos anões pelo rio, dentro de barris. A sequência é um prodígio de criação da Weta, a empresa de efeitos visuais de Peter Jackson – mesclando com habilidade a filmagem na locação com elementos digitais, o cineasta cria momentos inspirados como o plano sem cortes no qual acompanhamos um dos barris, com um dos personagens dentro, deslizando pela água e pela terra, e lutando com seus inimigos.

Pena que, se não é possível lembrar o nome do personagem, é sinal de que ele não se tornou marcante. Em O Senhor dos Anéis era possível conhecer todos os personagens; em O Hobbit isso não acontece, pois os anões não se tornam figuras individualizadas e carismáticas (um problema também presente no livro, deve-se ressaltar). Apenas Thorin (Richard Armitage), Balin (Ken Stott) e Kili (Aidan Turner) tem significativo tempo de tela. Kili, inclusive, na sua capacidade de “anão galã”, é usado para introduzir a única personagem feminina da história, Tauriel. Os dois estabelecem um relacionamento que não surge de forma muito orgânica, mas pelo menos a presença desta elfa, que não aparece no livro de Tolkein, é justificada pela atuação forte de Evangeline Lilly, tão carismática quanto nos seus tempos no seriado Lost.

Aliás, no tocante às atuações é bom ressaltar como tanto Lilly quanto Luke Evans vivem seus personagens com contenção, intensidade e segurança. Evans, como Bard, é um homem comum numa circunstância extraordinária, e numa história repleta de magos, criaturas e monstros, é bom ver um centro humano tão forte como ele – e seu personagem deverá ter mais importância ainda no próximo capítulo. Stephen Fry é uma bem-vinda adição ao elenco e é engraçado como sempre como o governante da Cidade do Lago. Já Lee Pace mostra-se afetado como Thranduil, e Orlando Bloom continua um bom personagem de videogame.

O que nos leva a algumas constatações inescapáveis em relação ao projeto. Legolas parece ter sido incluído na trama apenas para aumentar a “cota de ação” do filme. Em certa medida, isso também pode ser dito de Tauriel. Idem para a aparição do maior vilão de O Senhor dos Anéis, Sauron, e seu confronto com Gandalf – McKellen é ótimo como sempre no papel, mas neste filme o mago tem pouco tempo de tela e suas cenas não produzem tensão, pois já sabemos o destino do personagem. As lacunas presentes no livro O Hobbit dão margem a todas essas extensões imaginadas pelos roteiristas. O problema é que Peter Jackson não consegue torna-las interessantes a ponto de justificar suas existências. Como resultado, a sensação de repetição é inevitável – já vimos a maioria dessas coisas, de forma mais interessante, em O Senhor dos Anéis.

No entanto, algo que não vimos em O Senhor dos Anéis, e a mais brilhante criação deste filme, é o dragão Smaug, perfeitamente trazido à vida pelo time de efeitos da Weta. A interação dele com Bilbo, e depois com o restante dos anões, é absolutamente real, e o ator Benedict Cumberbatch dá mais um show usando apenas a sua voz e suas expressões faciais transferidas para a criatura. A aparição do personagem permite e Jackson conceber mais um brilhante momento visual, envolvendo uma gigantesca estátua de ouro – uma cena que não está no livro de Tolkien.

São momentos como esse que causam um efeito paradoxal no espectador, pois eles deixam entrever como Peter Jackson admira e tem carinho pelo material de Tolkien. Por isso mesmo, é uma pena perceber como a sua falta de restrição prejudica a própria história sendo contada. A ideia de estender a história de um livro em três filmes começa realmente a cobrar seu preço agora, quando vemos que as adições criadas por Jackson e seus roteiristas acabam não sendo tão interessantes assim (triângulo amoroso entre Fili, Tauriel e Legolas), ou se revelam meras repetições do que vimos na trilogia O Senhor dos Anéis (aparição de Sauron e sua influência na futura batalha dos Cinco Exércitos).

Como resultado, a história de Bilbo, o cara pequeno em meio a um mundo enorme, acaba perdendo foco e concisão. Visitar a Terra-média na visão de Peter Jackson permanece um prazer, mas esse sentimento vem se diluindo ao longo do tempo, por culpa dele mesmo.

NOTA: 6,5