No último dia 13 de outubro, o cantor e compositor americano Bob Dylan deu mais um típico nó nas cabeças do mundo inteiro.

A Academia Sueca, responsável pelo prêmio Nobel, decidiu homenagear o artista com a láurea de literatura, em reconhecimento à sua extraordinária obra poética em letras de música, muitas das quais (“Like a Rolling Stone”, “Blowin’ in the Wind” e “A Hard Rain’s a-Gonna Fall”, para ficar em apenas três exemplos) foram parte vital da revolução cultural e de comportamento promovida pelo rock nas últimas décadas. Muita gente chiou (“não é literatura”, foi o comentário mais óbvio e equivocado), mas, quando a polêmica assentar, esse terá sido só mais um triunfo numa carreira de importância, impacto e destemor ímpares na arte e cultura americanas.

Mas, como se ser um nome essencial da música – e, agora, das letras – de seu país não fosse o bastante, Dylan também tem uma influência importante e reconhecível sobre o cinema americano, tendo inspirado filmes e realizadores, além de reafirmar com frequência o impacto que certas obras tiveram em sua produção como letrista. Numa carreira onde, afinal, todas as correntes da grande arte americana se cruzam – de Walt Whitman a Edward Hopper, passando por Woody Guthrie e John Ford –, não poderíamos esperar outra coisa.


Dylan, o cinéfilo: referências a filmes em letras de canções

Ainda que seja menos aparente em sua obra do que a paixão pela música ou a literatura, o cinema também é parte fundamental da lírica de Dylan, sobretudo o que ele parece ter conhecido na juventude: filmes das décadas de 1940 e 50, com um predomínio do noir e do western – não por acaso, os dois gêneros mais tipicamente americanos da telona. O site Film Dialogue in the Lyrics of Bob Dylan conseguiu levantar um total de 60 filmes citados em canções do músico, seja de maneira direta (quando Dylan cita o filme pelo nome ou descreve uma cena) ou indireta (como, por exemplo, o uso de uma frase célebre de determinado filme, que parece remeter a ele no contexto da canção, mas também pode ser apenas coincidência).

Nesse rico acervo, cabem desde clássicos dos primórdios do cinema, como Freaks, de Tod Browning (1932), citado na canção “Tweedle Dee & Tweedle Dum”, do álbum Love and Theft (2001), até a comédia Uma Secretária de Futuro (1988), de Mike Nichols, que inspirou um trecho de “She’s My Baby”, de Dylan com o supergrupo Travelling Willburys (que também trazia, por sinal, George Harrison, Roy Orbison e Tom Petty).  Mas há referências sutis – e surpreendentes – também a joias do cinema europeu, como O Boulevard do Crime, de Marcel Carné (1945 – de onde Dylan parece ter tirado o amargo “Love is so simple, to quote a phrase/You’ve known it all the time, I’m learnin’ it these days”, de “You’re a Big Girl Now”) e A Doce Vida, de Federico Fellini (1960 – na letra de “Motorpsycho Nightmare”, o cantor cita uma mulher chamada Rita, que lhe parece saída diretamente da obra-prima felliniana). O álbum Empire Burlesque, de 1985, é um tesouro nesse sentido: por algum motivo, reminiscências de filmes parecem ter enchido a cabeça do cantor, e as letras desse disco citam desde Bronco Billy (1980), de Clint Eastwood, e Os Brutos Também Amam (1953), de George Stevens, até o seriado Star Trek, para não falar na grande admiração do músico: Humphrey Bogart.

Bogie é uma verdadeira fixação das letras de Dylan: uma fala do ator em Uma Aventura na África (1951) parece ter dado o mote à angustiada “Most of the Time” (de Blood on the Tracks, 1975); e nada menos que cinco clássicos do astro – Relíquia Macabra (1941); Casablanca (1942); Uma Aventura na Martinica (1944); À Beira do Abismo (1946); e Paixões em Fúria (1948) – aparecem salpicados nas letras de Empire. Gregory Peck, por sua vez, é uma referência constante em “Brownsville Girl”, um clássico subestimado do disco Knocked Out Loaded (1986). Numa letra elíptica, que embaralha sonho, lembrança e realidade, o protagonista de Dylan (criado em parceria com o dramaturgo e ator Sam Shepard, de Dias de Paraíso [1978] e Estrela Solitária [2005]) embarca numa pungente viagem interior, enquanto aguarda o começo do western O Matador (1950), dirigido por Henry King.


Dylan nas telas: filmes com e sobre Bob Dylan

O cantor e compositor também atrai o interesse do cinema desde pelo menos 1964, quando o estouro de The Freewheelin’ Bob Dylan (1963) o colocou no radar nacional por suas canções de protesto mordazes e afiadas. O documentarista Murray Lerner, conhecido por seus filmes sobre música, capturou as performances do jovem intérprete nos festivais de música folk de Newport entre os anos de 1963 e 65, imortalizadas depois nos filmes Festival (1967) e, mais recentemente, The Other Side of the Mirror: Bob Dylan at the Newport Folk Festival (2007). Foi Lerner quem preservou para a posteridade a hostilidade da plateia do festival em 1965, quando o cantor subiu ao palco com uma guitarra elétrica e uma banda de rock, provocando a ira dos puristas da música folk, ou “de raiz”, americana. O evento marcaria o salto de Dylan de mera promessa para ícone da contracultura, e sua música foi um componente fundamental na “revolução jovem” dos anos 1960, a ponto do ator e roteirista Buck Henry descrever assim a chegada ao poder da geração New Hollywood, formada, entre outros, por Coppola, Scorsese e Spielberg: “agora os filhos de Dylan estavam no comando”.

Ainda nos anos 60, um outro filme encabeçado por Dylan seria importante para os novos rumos do cinema americano: Don’t Look Back (1967), de D. A. Pennebaker. Gravado em 1965, em meio ao turbilhão pós-Newport, a obra captura a efervescência criativa do músico, que parece claramente distante de seus companheiros do folk, com uma postura rebelde e cheia de humor nonsense. A obra é um marco do chamado cinema direto, um movimento no documentário americano que pregava a abolição de expedientes artificiais como locução e trilha sonora, e buscava dar maior ênfase ao naturalismo do registro. O filme de Pennebaker contém uma das cenas mais celebradas desse subgênero: o momento em que Bob Dylan tem um “estalo” para uma canção, enquanto toca piano num quarto de hotel. Como curiosidade, a obra traz também um dos primeiros videoclipes de que se tem notícia: a sequência inicial, em que Dylan segura cartazes satíricos que ora seguem, ora parodiam a letra de “Subterranean Homesick Blues”, do álbum Bringing It All Back Home (1965). No ano seguinte, o cantor ainda seria uma das cinquenta pessoas, entre anônimos e celebridades, convidadas por Andy Warhol para fazer screen tests em seu estúdio Factory, os quais depois ganhariam o mundo em exposições.

A ascensão do cinema “jovem” no fim da década de 1960 fez Dylan querer ser, ele mesmo, diretor. A chance veio com Eat the Document (1972), um obscuro documentário que deveria ser a sequência de Don’t Look Back. Dirigido pelo mesmo D. A. Pennebaker, sob a orientação de Dylan, o filme acompanhou a turnê do músico pelos Estados Unidos e a Europa no começo de 1966. Em julho daquele ano, porém, Dylan sofreu um acidente de motocicleta que o tirou de circulação por vários meses, só voltando ao material de Eat the Document um ano depois. Após achar que o novo trabalho estava parecido demais com Don’t Look Back, Dylan decidiu editar ele mesmo o material, descartando o trabalho linear de Pennebaker por uma montagem surrealista, que, previsivelmente, não funcionou. Até hoje, o filme só é encontrável em torrents da vida, mas vale a conferida por cenas como a da vaia recebida na Inglaterra, quando um defensor do folk chamou Dylan de “Judas – recebendo, em troca, uma versão berrada, febril, de “Like a Rolling Stone” (recuperada depois no excelente No Direction Home, de Martin Scorsese).

Depois do fracasso de Eat the Document, Dylan se arriscou poucas vezes no cinema. Em 1971, ele aceitou um convite para atuar – embora seu trabalho apático seja pouco lembrado – no clássico de Sam Peckinpah, Pat Garrett & Billy the Kid (1971), de onde sairia um dos grandes sucessos do músico, “Knockin’ on Heaven’s Door”. Dylan, porém, reuniu todas as suas energias como ator, diretor e músico no célebre, porém, fracassado, Renaldo and Clara (1978). Vivendo seu ápice como cantor e instrumentista – seus discos do período, Blood on the Tracks (1975) e Desire (1976) estão entre as melhores coisas que ele já fez – e inspirado por movimentos como o glam rock de David Bowie e os saraus de poesia e rock de Patti Smith, Dylan montou uma das melhores bandas de sua carreira para percorrer os Estados Unidos com um espetáculo teatral, mistura de show circense, teatro de variedades e concerto de rock. Intitulada “Rolling Thunder Revue”, a trupe do cantor fez shows antológicos entre 1975 e 76, registrados neste filme. Infelizmente, Dylan, que também vivia o fim de seu casamento com a esposa de longa data, Sara Lownds, teve também a ideia de criar uma história ficcional entre as apresentações musicais, escrita em parceria com Sam Shepard, onde os protagonistas Renaldo (Dylan) e Clara (Lownds), mais Joan Baez (ex do cantor) como a Mulher de Branco, vivem uma versão mal disfarçada do conflito entre marido e mulher na vida real. Com críticas ácidas na imprensa, o filme foi completamente esquecido, mas fãs do cantor não deveriam deixar de conferir os intensos e maravilhosos números musicais, registros preciosos da última turnê antológica do artista.

Dois filmes estrelados por Dylan nos anos 80 e 00 são notas de rodapé nessa história: Corações de Fogo (1987), dirigido por Richard Marquand (de Star Wars: O Retorno de Jedi) é uma história boba sobre um rockstar recluso (Dylan) num triângulo amoroso; e A Máscara do Anonimato (2003), com direção de Larry Charles (diretor das comédias de Sacha Baron Cohen) e roteiro do próprio Dylan, além do elenco de sonho (Jeff Bridges, Penélope Cruz, John Goodman, Jessica Lange, Luke Wilson, Angela Bassett, Bruce Dern, Ed Harris, Val Kilmer, Mickey Rourke e Christian Slater, todos trabalhando pela tabela do sindicato, só para aparecer ao lado do lendário cantor) é uma história equivocada, sobre um músico (quem?) que sai da prisão para fazer um concerto beneficente numa decadente América futurista.

Também não se sai muito melhor o aguardado tributo do diretor Todd Haynes (de Velvet Goldmine [1998] e Longe do Paraíso [2002]) ao cantor: Não Estou Lá (2007). Com uma ambiciosa estrutura misturando personagens e tramas, cada um homenageando uma determinada fase na obra de Dylan, o filme acabou soando pretensioso e hermético, apesar de algumas belas sequências (Cate Blanchett reina inconteste como o Dylan agitado e frágil de 1966; Heath Ledger, apesar do pouco tempo em cena, e Richard Gere também estão bem, mas o geralmente confiável Christian Bale está constrangedor). O melhor do artista parecem ser mesmo os documentários: a última década viu dois exemplares fantásticos, o já citado The Other Side of the Mirror (2007), de Murray Lerner, e o sublime No Direction Home (2005).

Dirigido por Martin Scorsese, NTD é o mais ambicioso e profundo estudo sobre as origens e o impacto cultural do artista americano até agora. Dividido em duas partes, o filme cobre o período entre a chegada do músico a Nova York, no início da década de 1960, até a tensa turnê europeia de 1966, pouco antes do acidente de moto. Trazendo uma rara – e longa – entrevista com o próprio Dylan, o documentário reúne um riquíssimo acervo de imagens de arquivo e entrevistas para começar a decifrar essa esfinge tão enigmática quanto monumental como o artista americano. Faça o favor de reparar na louca abertura da segunda parte, quando um Dylan chapado começa a desfilar uma série de inversões nonsense sobre a placa de um pet shop. Imperdível!


Soprando ao vento: as canções de Bob Dylan em filmes

Por fim – e para celebrar o que é, afinal, o maior legado do único detentor do “Grand Slam” nas artes (Grammy, Oscar, Pulitzer e Nobel) –, vamos relembrar algumas cenas antológicas do cinema embaladas por canções do bardo americano:

“The Times They Are a-Changin’” – Watchmen (2009)

https://www.youtube.com/watch?v=aVUDdQS2UxA

“The Man in Me” – abertura de O Grande Lebowski (1998)

“Hurricane” – Jovens, Loucos e Rebeldes (1993)

“Knockin’ on Heaven’s Door” – Pat Garrett & Billy the Kid (1973)

E, para encerrar, o clipe da canção que deu a Bob Dylan o Oscar: “Things Have Changed”, da trilha do filme Garotos Incríveis (2000):