Existem duas cenas em It: A Coisa nas quais fica claro que os cineastas responsáveis pelo filme captaram a essência do livro épico de terror do mestre Stephen King. A primeira é logo no começo, quando vemos o pequeno e adorável Georgie (Jackson Robert Scott) descendo ao porão da sua casa para buscar algo para o irmão Bill (Jaeden Lieberher). Em meio à escuridão do lugar e ao barulho da chuva caindo ao redor, Georgie vê dois pontinhos brancos em meio às trevas, como se fossem olhos… Depois uma luz é acesa e ele descobre se há algo a temer ou não. A segunda cena é quando todos os garotos do filme se reúnem para ajudar outro, que está sendo atacado por garotos valentões e mais velhos. A “guerra de pedras” que se vê nesse momento é divertidíssima, empolgante e capta perfeitamente a união do grupo. Por um momento, todos nós desejamos ter tido amigos como aqueles durante aquela época complicada do fim da infância para o começo da adolescência.

Essas são as ideias básicas de It: A Coisa: é um livro (e um filme) sobre medos, infantis e adultos, e como união e amizade são capazes de ajudar alguém a vencer os terrores da vida, sejam eles deste mundo ou de outro. Sim, é uma história de terror onde muita gente morre (incluindo crianças), mas esse fundo emocional dá a ela uma ressonância e uma força que, felizmente, não se perdeu na tradução da página para a tela. Mérito para o diretor Andy Muschietti e para os seus roteiristas, Chase Palmer, Gary Dauberman – dos filmes da boneca Annabelle – e Cary Fukunaga, diretor de Jane Eyre (2011) e da elogiadíssima primeira temporada de True Detective, que quase comandou It, mas deixou o projeto por discordâncias com o estúdio New Line.

Os roteiristas também foram bastante espertos em aproveitar a tendência da nostalgia dos anos 1980, ambientando o longa nesta época – no livro, o segmento das crianças se passa na década de 1950. Assim, é perceptível um tom meio Stranger Things na história dos garotos que constituem o “Clube dos Otários”, rejeitados que se unem para enfrentar a misteriosa força maligna conhecida como Pennywise, o Palhaço (Bill Skarsgård, num desempenho assustador e cheio de energia). Pennywise acorda a cada 27 anos para se alimentar das suas vítimas, e ninguém na cidade de Derry parece se incomodar com os desaparecimentos na região, especialmente de crianças. Ninguém, exceto os Otários, dos quais Bill acaba se tornando um líder após a morte de Georgie na cena de abertura.

É interessante essa sinergia, com um trabalho se alimentando do outro, porque na verdade Stranger Things é que veio de It, o livro, não o contrário – a conexão é tornada mais explícita pela escalação do jovem Finn Wolfhard, da série, para o papel do desbocado e divertido Ritchie. E assim como acontecia no seriado, a maior qualidade do filme é a química entre o jovem elenco. Difícil imaginar versões mais próximas dos personagens do livro do que os atores escolhidos aqui. Todos estão ótimos, mas as revelações são mesmo Lieberher, Sophia Lillis como Beverly e o adorável Jeremy Ray Taylor como Ben. Mesmo quando o filme ameaça sair do controle, das mãos de Muschietti e dos roteiristas, são os garotos que trazem os espectadores de volta e os mantém investidos até o fim.

Porque, sim, há momentos nos quais It sai do controle. Muschietti, diretor do mediano Mama (2013), mostra não ter tanto controle assim da atmosfera de tensão e, pecado entre os pecados, se revela empolgado demais com a computação gráfica, mostra demais as demoníacas criações do Pennywise, e quando se mostra demais as coisas assustadoras, a força do terror vai embora. Exemplo disso é a cena em que Stanley (Wyatt Olef) é aterrorizado por uma figura que saiu de um quadro. É até covardia comparar essa cena com outra semelhante vista recentemente em Invocação do Mal 2 (2016), do cineasta James Wan: a cena do quadro com a Freira foi tão forte que praticamente vai render à essa personagem seu próprio filme. Já em It, o bicho feito por computador dá um sorriso cheio de dentes e o medo vai embora. Até existem imagens de pesadelo em It e algumas situações mais propícias para o terror, mas em geral Pennywise e o filme não assustam tanto quanto os seus realizadores acreditam que assusta. Não deixa de ser essa a “moral da história”, mas o filme seria mais forte se o bom trabalho de Skarsgård não fosse erodido pelo excesso de efeitos e pela tendência frustrante do diretor de não deixar quase nada para a imaginação.

O roteiro – talvez devido às reescritas após a saída de Fukunaga – também é meio desajeitado, especialmente na meia hora final, embora as imagens e situações sejam bastante fieis ao livro de King. É quando o longa se torna mais próximo dos Annabelle do que de True Detective: ao invés de investir no imaginário bizarro de King, o confronto entre o vilão e os garotos basicamente se resume a uma sessão de pancadaria, com direito a várias pontas soltas no desfecho. O destino da Beverly, em especial, levanta sobrancelhas…

Ainda assim, o letreiro final deixa claro que teremos a segunda parte – a outra metade do livrão de 1000 páginas, mostrando os personagens adultos e voltando a Derry para enfrentar Pennywise novamente. Por ora, It: A Coisa é realmente bom: os garotos, o humor, a camaradagem e o terror (este, até certo ponto), esses elementos funcionam. Com um pouco mais de capricho, poderíamos ter tido um verdadeiro novo clássico do terror. Mesmo assim, qualquer um que tenha lido o livro – e, obviamente, convivido um longo tempo com seus personagens – não consegue evitar uma emoção profunda e honesta ao presenciar certas cenas e situações. It, o livro, toca em algumas verdades muito elementares para o ser humano. Felizmente, It o filme consegue reproduzir essa mesma façanha, pena que erre nas pequenas coisas. O diabo, ou o palhaço, está mesmo nos detalhes.