Jessica Jones, a protagonista do seriado homônimo da Marvel Television em parceria com a rede ABC e o Netflix, é a primeira super-heroína de importância real que o estúdio nos mostra desde que iniciou suas produções com Homem de Ferro (2008). Alguns podem dizer: Mas e a Gamorra de Guardiões da Galáxia (2014)? Bem, por sua própria definição Gamorra era uma personagem distante do publico, literalmente de outro mundo: afinal era filha de um tirano intergaláctico e uma assassina profissional… Muitos, claro, também se lembrarão da Viúva Negra. Bem, a Viúva, apesar de todo o esforço de Scarlett Johansson, é a garota no clube masculino e só funciona como coadjuvante – afinal, é melhor esperar sentado pelo filme solo dela. Além disso, o segundo filme dos Vingadores maltratou demais a personagem, com um romance com o Hulk tirado do bolso do roteirista e aquele papo de “se sentir uma aberração por não poder ter filhos” (Que vergonha, Joss Whedon).

Jessica é o artigo genuíno. Nesta temporada, baseada na série em quadrinhos de Brian Michael Bendis e Michael Gaydos, a conhecemos como a dona da agência de investigação Alias. Ela é uma detetive particular, na melhor tradição do filme noir – os créditos de abertura e o tema que se inicia com um piano jazzístico não nos deixam esquecer disso. Mas há um diferencial: como um típico personagem Marvel, ela tem poderes. Jessica é superforte e consegue saltar alturas incríveis, dando a impressão de que voar é apenas questão de tempo e treino. Ao longo dos 13 episódios a vemos usar seus poderes e juntar alguns aliados na sua luta contra o misterioso Kilgrave. Ele consegue controlar as mentes das pessoas com a voz, fazendo-as obedecer às suas vontades, e o vilão e Jessica tiveram um passado de abuso que deixou marcas na vida da heroína.

A personagem vive e atua no mesmo bairro nova-iorquino de Hell’s Kitchen que já conhecemos do sucesso anterior da produtora, a série Marvel: Demolidor. Daquela série, Jessica Jones compartilha a ambientação realista e sombria e a ênfase num tipo de heroísmo mais “pé no chão”. Essa seriedade já começa na escalação da atriz principal e no tratamento do tema do seriado. Jessica é vivida pela interessante Krysten Ritter, que até este trabalho ainda era mais conhecida pela sua memorável participação em Breaking Bad, na qual interpretou a viciada e sombria Jane. Ritter tem sempre uma faísca de ironia no olhar e parece incapaz de viver uma mera donzela em perigo, por isso sua presença dá ao seriado um importante peso dramático, mesmo quando coisas malucas começam a acontecer na segunda metade da temporada.

Já quanto ao tratamento do tema, é muito interessante a opção dos roteiristas, liderados pela produtora-executiva Melissa Rosenberg – um dos bons profissionais revelados pelo seriado Dexter nos seus bons anos – de tratar o dilema da protagonista a sério. Numa época em que a luta feminina em busca de respeito e igualdade perante os homens está cada vez mais presente, os roteiros de Jessica Jones não medem as palavras: sim, a heroína foi estuprada pelo vilão e tratada como escrava, e a caracterização de Jessica como uma vítima de stress pós-traumático depois de viver com Kilgrave é precisa e merece elogios. Trata-se de algo muito ousado, ainda mais em se tratando de uma produção “super-heróica” escapista, e importante por refletir os nossos tempos.

Kilgrave é vivido pelo britânico David Tennant numa atuação repleta de exageros, mas estranhamente cativante, praticamente um contraponto a Ritter. Os dois funcionam muito bem juntos, mas nem Ritter nem os roteiros deixam o vilão roubar a cena da heroína. Aliás, o ponto de vista feminino valoriza a amizade entre as mulheres – o relacionamento entre Jessica e sua irmã adotiva Trish, vivida por Rachael Taylor, é o melhor e mais verdadeiro da série. E há cenas de sexo e uma igualdade sexual na trama, mais do que vemos em Game of Thrones, por exemplo: Ritter aparece de calcinha numa cena, mas alguns episódios depois o público feminino pode passar vários minutos vendo o ator Mike Colter (que faz outro herói Marvel, o Luke Cage) só de toalha.  Também existe uma curiosa subversão do papel masculino na figura do policial Simpson (Wil Traval): o sujeito, que vive para proteger e servir, entra em parafuso quando é dominado por Kilgrave e se torna inseguro para cumprir seu papel de homem, e essa insegurança faz com que ele chegue até a se tornar um vilão ao longo da temporada.

Essa dinâmica sexual é muito interessante – e nela se inclui até mesmo a advogada interpretada por Carrie-Anne Moss, que encarna a primeira lésbica assumida numa produção Marvel. Por isso mesmo, é uma pena que a temporada seja atrapalhada por problemas de roteiro. Para começar, a série é muito devagar na exposição: demoramos muito para compreender os poderes de Jessica, quem ela é e como se relaciona com outros personagens, e para tentar diminuir esse problema apela-se para a boa e velha narração em off, muito presente nos primeiros episódios. É uma estratégia diferente da vista em Demolidor, que de cara nos dizia quem era o herói e qual era o seu dilema. Claro, a temporada acaba e vários mistérios da vida de Jessica ficam para a próxima… Esse jogo de esconde mantém a personagem à distância por muito tempo, e os primeiros episódios se mostram com um tom morno.

A segunda metade da temporada sofre com mais problemas de roteiro: conveniências (por exemplo, Cage topando com Kilgrave num momento primordial para criar um drama), personagens agindo de modo forçado para movimentar a trama (não deixa de ser estranho vermos a superforte Jessica ser dominada por um grupo de pessoas comuns num momento importante), e bobagens como uma “vacina” feita para transformar Kilgrave em um quase “super-vilão”. A temporada se mantém num bom nível – e a estratégia do Netflix de disponibilizar tudo de uma vez ajuda a segurar o interesse – mas esses clichês que já vimos inúmeras vezes em tantos seriados prejudicam o resultado final.

E esse resultado merece elogios por conseguir avançar a representação feminina nos super-heróis das telas. Jessica Jones é uma personagem complexa e interessante, capaz de render outras boas histórias e que, nesta temporada inicial, teve seu dilema abordado de forma contundente e séria. Um dilema bem feminino, mostrado pelo ponto de vista feminino, e de uma maneira que consegue agradar e ser compreensível a todos. A série é mais um acerto da Marvel e talvez um dos seus mais importantes, abrindo o caminho para mais representações no futuro. Agora, alguém pode conseguir fazer algo interessante com a Viúva Negra: uma heroína pé-no-chão, de jaqueta de couro e cara de mal-humorada mostrou que é possível.