É horrível viver em Panem, o mundo ficcional da franquia Jogos Vorazes. A maior parte da população vive na pobreza, quem é rico come bem mas paga o preço ao abandonar qualquer senso estético ao se vestir, a repressão é dura e o governo autoritário. E o pior de tudo: as vidas de todos parecem ser dominadas pela televisão! A competição dos Jogos Vorazes, nos quais jovens selecionados de todos os distritos têm de lutar até a morte, no fundo não passa de um reality show – e é essa crítica afiada (e às vezes não tão sutil) aos meios de comunicação de massa que rendem os melhores momentos do segundo filme da franquia, Jogos Vorazes: Em Chamas.

Ambientada um ano após a primeira parte, esta sequência começa com a protagonista Katniss Everdeen (interpretada por Jennifer Lawrence) ainda sofrendo danos psicológicos por ter passado pelos Jogos Vorazes. A paz precária na qual se encontra é interrompida de vez quando a moça é obrigada a participar da turnê da vitória ao lado do outro sobrevivente do filme anterior, Peeta Melark (Josh Hutcherson). Vendo que a popularidade de Katniss é perigosa e pode incitar rebeliões, o Presidente Snow (Donald Sutherland) decide convocar a jovem e Peeta para a edição comemorativa dos Jogos, o Massacre Quaternário, disputado apenas por antigos vencedores.

No comando destes Jogos Vorazes “especiais” está o novo Idealizador, Plutarch Heavensbee (Philip Seymour Hoffman, numa atuação apagada). E também houve uma mudança no comando deste novo capítulo da franquia cinematográfica: sai o diretor Gary Ross, de Seabiscuit: Alma de Herói (2003), e entra alguém mais habituado às grandes produções de Hollywood, o diretor Francis Lawrence de Constantine (2005) e Eu Sou a Lenda (2007). Lawrence, no fim das contas, entrega um espetáculo mais bem acabado e superior ao primeiro Jogos Vorazes.

Adotando um tom sério e apropriado para uma produção que, no fundo, envolve adolescentes se matando e lutando contra um governo totalitário, Francis Lawrence faz do primeiro ato de Em Chamas uma surpreendente crítica à manipulação da mídia. Katniss e Peeta se tornam o “casal dos sonhos”, cujo envolvimento é usado pelo governo para manter a população adormecida. Eles são forçados a fingirem estar apaixonados (embora, da parte de Peeta, o sentimento seja verdadeiro), fazem discursos artificiais frente à população oprimida e aparecem em versões bizarras dos programas de auditório da TV.

Não deixa de ser bom quando um produto hollywoodiano como esse aborda um tema além do mero entretenimento, e desde O Show de Truman (1998) não se via um filme mostrar de forma tão ácida o processo de alienação de uma população via TV. Obviamente, às vezes essa crítica tem a sutileza de uma manada de elefantes – como na cena em que Peeta observa os ricaços numa festa tomando um líquido que os faz vomitar, apenas para se empanturrarem de novo. Mas de toda forma essa crítica está lá: a TV como instrumento de manipulação das massas, a “armação” por trás do reality show e a obsessão com o “entretenimento”, usado para mascarar os verdadeiros problemas da sociedade, são elementos indissociáveis da história de Jogos Vorazes.

Mas, claro, não só de subtexto vive uma franquia hollywoodiana, e do meio para o final o diretor Francis Lawrence se limita a fazer uma “refilmagem compactada e melhorada” do longa original. De novo vemos Katniss e Peeta lutando para sobreviver numa área florestal, com algumas variações interessantes – o “relógio” visto do alto, formado por faixas de terra com uma ilha no centro, é a mais interessante delas, do ponto de vista visual. Há mais ação e até um pouco mais de efeitos.

E o elenco também contribui para essa melhora. Os veteranos do filme original Woody Harrelson e Elisabeth Banks roubam todas as cenas em que aparecem e são os responsáveis pelos (poucos) momentos de descontração da trama. Stanley Tucci também se mostra estranhamente cativante com seu personagem Caesar, apresentador de TV, uma espécie de versão mais bizarra do Silvio Santos. Os novatos na série também se mostram carismáticos, com exceção do já mencionado Hoffman – talvez seu personagem seja mais explorado nas sequências. Neste segundo filme saem os rostos jovens e inexperientes do primeiro Jogos Vorazes e entram veteranos do cinema como Jeffrey Wright, Amanda Plummer e Lynn Cohen – não deixa de ser interessante a participação de uma idosa nos Jogos… E a atriz Jena Malone é outra que chama a atenção ao viver a intempestiva Johanna. Aliás, Jena poderia ter feito uma ótima Katniss…

Porém, o coração do filme é mesmo o desempenho de Jennifer Lawrence. Ciente do status icônico da personagem, a atriz se entrega totalmente ao papel de Katniss, tornando-a uma interessante heroína de ação, algo raro no cinema. Lawrence é verdadeira em todos os momentos e o publico está sempre ao lado dela no decorrer da história, descobrindo os fatos junto com a protagonista. Aliás, é interessante notar como essa abordagem faz com que Em Chamas não tenha um final propriamente dito – o longa termina praticamente com um “continua…”, quando Katniss chega a algumas descobertas surpreendentes. Essa falta de uma conclusão deve irritar alguns espectadores, mas é a presença de Jennifer Lawrence que manterá o publico ligado nos próximos capítulos.

É curioso notar como, nos reality shows, os momentos mais dramáticos são frequentemente esticados, sempre deixados para o “próximo bloco”. Os cineastas por trás de Jogos Vorazes até criticam a cultura do espetáculo, mas também fazem uso de alguns dos seus expedientes. Aguardemos a edição do ano que vem.

Nota: 7,0