Na noite da quinta-feira, dia 10 de novembro, foi noticiado o falecimento do poeta, escritor e músico canadense Leonard Cohen na página de Facebook do artista. Cohen havia lançado seu derradeiro álbum, You Want It Darker, em outubro, e parecia frágil. Já tinha 82 anos. Chegou a dizer numa entrevista, divulgada perto do lançamento do disco, que estava “pronto para morrer”. Na faixa-título do disco, Cohen canta “Estou pronto, Senhor”.

Espiritualidade – mais do que religião – política, guerra e sexualidade sempre foram temas das suas músicas. O nome de Leonard Cohen não é tão conhecido aqui no Brasil – ele morreu sem nunca se apresentar em nosso país, uma pena – mas na Europa, nos Estados Unidos e na sua terra-natal, o Canadá, o nome dele é reverenciado como um dos grandes artistas do século XX. E incrivelmente, ele não só conseguiu se manter relevante no século XXI, como alcançou um reconhecimento e uma popularidade que nunca havia experimentado até então. Por muito tempo, muita gente não soube quem era Cohen; hoje, o mundo lamenta a sua perda.

Cohen nasceu em 1934 em Montréal. Judeu e filho de uma tradicional família, ele logo se interessou por poesia e por uma vida boêmia. Escreveu livros de poesia e romances que, apesar de elogiados, não vendiam e passavam despercebidos pelo público. Nos anos 1960, Cohen se mudou para a ilha grega de Hydra, teve um relacionamento marcante com a sueca Marianne Ihlen – a quem dedicou uma das suas mais belas canções, “So Long, Marianne” – e começou a musicar seus poemas. Cansado de ser ignorado como escritor, virou cantor com o lançamento do seu primeiro disco em 1967. Suas canções eram consideradas depressivas e alguns reclamavam da sua voz, que mudou ao longo dos anos graças à bebida e cigarro.

Mas prosseguiu na carreira e se tornou um grande nome da música folk, com influências espanholas e até judaicas. Com o tempo, a imprensa musical tentou criar uma rivalidade entre Leonard Cohen e Bob Dylan – uma bobagem, pois os dois sempre se deram bem – e não faltou quem definisse o canadense como um Dylan mais sombrio, “lado B”. Em todo o caso, Cohen produziu bem menos que Dylan: com quase 50 anos de carreira, lançou 14 discos de estúdio. Numa nota pessoal, preciso reconhecer que sempre preferi Cohen: claro que Dylan é um gênio, mas com o tempo virou um cantor de blues, um arqueólogo do cancioneiro americano.  Já Cohen passou a vida fazendo “musica de Leonard Cohen”, algo realmente único e especial.

Mas este é um site de cinema, certo? Bem, o cinema e a TV ajudaram e muito a tornar o nome de Leonard Cohen mais conhecido. Vamos relembrar alguns dos principais momentos nos quais a sua música combinou com as imagens e intenções de diferentes cineastas.


Faroeste melancólico: Quando os Homens São Homens (1971)

O primeiro cineasta a notar o poder das canções de Cohen foi o lendário Robert Altman, então recém-saído do seu mega-sucesso M.A.S.H. (1970). Altman enfrentou condições inóspitas para filmar o melancólico e estranho faroeste Quando os Homens São Homens, com os astros Warren Beatty e Julie Christie. A história do trambiqueiro McCabe (Beatty) e da pragmática prostituta Sra. Miller (Christie), e seus esforços para criar uma cidade no meio da nada, foi mostrada ao som de três canções de Songs of Leonard Cohen (1967), o primeiro disco do cantor. The Stranger Song, Winter Lady e Sisters of Mercy caem como luvas sobre as imagens frias e irreais de Altman, completando a atmosfera de um filme único e que só ganhou mais estatura com o tempo – é uma grande influência, por exemplo, sobre Sangue Negro (2007) de Paul Thomas Anderson.


Cohen sonorizando a comédia: Alta Tensão (1990)

Esta comédia de ação com Mel Gibson e Goldie Hawn pegou seu título original, Bird on a Wire, emprestado de um dos clássicos de Cohen, presente no seu segundo disco, Songs From a Room (1969). A canção também toca no filme. Talvez por causa dessa experiência, Gibson se tornou um grande fã de Cohen e chegou até a produzir o documentário Leonard Cohen: I’m Your Man (2006), sobre o cantor e no qual suas músicas ganharam versões de outros artistas.


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Um strip-tease estranho: Exótica (1993)

Como legítimo canadense, o cineasta Atom Egoyan é fã de Cohen. No seu drama sensual Exótica, o cineasta mostrou uma estranha maneira de fazer strip-tease, ao som da pessimista canção Everybody Knows do disco I’m Your Man de 1988.

https://www.youtube.com/watch?v=A24SRkjZvzY


O futuro, baby: Assassinos por Natureza (1994)

Foi graças ao filme polêmico e provocador de Oliver Stone que conheci Cohen. O vozeirão cavernoso e suas músicas casaram bem com o clima da jornada dos assassinos Mickey e Mallory Knox (Woody Harrelson e Juliette Lewis). No filme, três canções do disco The Future (1993) são ouvidas: a atmosférica Waiting for the Miracle no inicio, a belíssima Anthem na cena em que os detentos da prisão atacam o diretor vivido por Tommy Lee Jones, e The Future nos inventivos créditos finais, mandando o espectador para casa com uma forte inquietação. Aliás, The Future permanece muito atual, com Cohen cantando “Eu vi o futuro baby, e ele é de matar!”, e consegue ao mesmo tempo ser muito sombria e gostosa de ouvir.


Hallelujah

Essa é a canção mais famosa de Cohen, originalmente incluída no disco Various Positions (1984). Ninguém prestou atenção nela quando Cohen a cantou, mas em 1994 o jovem cantor Jeff Buckley a regravou numa versão magnifica para o seu álbum de estreia, Grace. Três anos depois Buckley morreu afogado num acidente, o que deu um impulso nesta que virou a sua mais emocionante e conhecida gravação. A partir daí, em várias versões o Hallelujah de Cohen apareceu em inúmeros seriados e filmes – no cinema foi ouvida, por exemplo, em Shrek (2001), O Senhor das Armas (2005) e o “visionário” Zack Snyder a colocou num momento totalmente inapropriado em Watchmen: O Filme (2009). A canção virou tão onipresente que o próprio Cohen chegou a declarar que gostaria de um embargo sobre ela. Mas ninguém a cantou como ele, só ele dava a ela a mistura certa de lamento e prece e ressaltava a oposição entre o amor divino e o terreno, sexual, na canção. Nas mãos da maioria dos outros, o Hallelujah é reduzida apenas a uma prece religiosa, o que ela não exatamente é.

Crítica: Life Itself - A Vida de Roger EbertLife Itself: A Vida de Roger Ebert (2014)

Uma das cenas mais emocionantes deste documentário sobre a vida do famoso crítico de cinema norte-americano envolve a canção de Cohen I’m Your Man, do disco homônimo. Veja e tente não se emocionar.

Crítica: True Detective - 2ª TemporadaTrue Detective: Segunda temporada

A melhor coisa da segunda temporada de True Detective foi a abertura, na qual os visuais se complementavam com o som da canção Nevermind, do disco Popular Problems (2014). A abertura nos deixava empolgados no começo de cada episódio, pena que o que vinha depois não estava à altura desses momentos iniciais…


Um poeta também do século XXI

Nos últimos anos de sua vida, Leonard Cohen embarcou em várias turnês pelo mundo, que o trouxeram aclamação e fama. A necessidade o levou a fazer isso: após passar quase toda a década de 1990 como monge budista, ao retomar a carreira Cohen descobriu que o seu dinheiro havia sido roubado por sua empresária. Mas todo esse trabalho o deixou reenergizado, a ponto de gravar três discos de inéditas (todos muito bons) entre 2012 e 2016.

De certa forma, sua morte encontra paralelo na de outro ídolo que se foi em 2016: David Bowie. Tal como Bowie, Cohen pôde se despedir como artista com seu álbum final e deixou um legado musical e poético incalculável e que sobreviverá.

Mesmo assim, a genialidade de Leonard Cohen ainda não é tão conhecida quanto deveria. Então, caro leitor, meu conselho para você é mergulhar na obra dele, tanto musical quanto escrita, se puder. Algumas canções dele podem lhe assustar, outras poderão deixa-lo incrivelmente comovido com a humanidade e a força poética das palavras e versos. Com o tempo, o vozeirão dele poderá fazer parte importantíssima da sua vida, assim como faz parte da minha e de muitos outros, podendo sonorizar tanto os maus quanto para os bons momentos – afinal, há muita esperança e até bom humor nas canções dele.

E o cinema pode servir de porta de entrada para a obra deste inimitável artista. Então, vamos assistir, e ouvir. Vamos descobri-lo na Torre da Música, cantando com a sua “voz de ouro”…