Nas primeiras cenas do episódio inicial de Luke Cage, vemos uma conversa animada dentro de uma barbearia no Harlem, em Nova York. Todas as pessoas lá dentro são negras. O clima descontraído e o papo que abrange basquete e a clientela ideal do lugar despertam lembranças do Faça a Coisa Certa (1989) do cineasta Spike Lee. É a essência deste seriado da parceria Marvel Television/Netflix: um retrato da vida dos negros americanos, algo parecido com o que Lee realizou no seu influente longa, misturada com elementos de histórias de super-heróis.

O personagem Luke Cage foi criado pela Marvel no começo da década de 1970, numa tentativa de aproveitar a onda do cinema negro blaxploitation. Naquela época, Cage era a ideia que roteiristas brancos tinham dos negros: o personagem falava algumas gírias, tinha um grande penteado afro, peito exposto pela jaqueta amarela aberta, e usava tiara, braceletes e correntes. Na hora de reimaginar o personagem para a série, o produtor-executivo e criador Cheo Hodari Coker tomou como base a encarnação mais recente do herói nas HQs e resolveu usá-lo para abordar a cultura negra americana, do mesmo jeito que Jessica Jones, outra série da parceria Marvel/Netflix, abordava a temática feminista.

Aliás, fomos apresentados a Cage em Jessica Jones. Por já o conhecermos, os roteiristas dessa nova série adotam uma estratégia diferente: a origem do herói vai sendo revelada ao longo da temporada, e segredos do passado vão sendo apresentados ao personagem junto com o público. Mike Colter retorna como Cage, que no início da série é visto trabalhando na tal barbearia, varrendo o chão – trata-se de um sujeito humilde que reluta em assumir seu papel de herói, apesar de ser invulnerável e possuir superforça. No entanto, ao longo da temporada Cage vai entrar em conflito com forças poderosas no Harlem e quando o protagonista começa a esclarecer coisas sobre o seu passado, já estamos investidos nele.

Luke Cage estabelece com precisão o seu universo, e a energia negra do seriado e do Harlem são diferentes da Hell’s Kitchen de Demolidor e Jessica Jones. A trilha sonora do seriado é sensacional, remetendo ao clima dos filmes blaxploitation e com direito até a números musicais na boate Harlem’s Paradise. Há muitas citações à cultura e à história dos negros americanos, Cage é visto lendo romances de mistério de autores negros, e nomes do rap e do jazz aparecem em alguns dos episódios, como Method Man e a cantora Sharon Jones. E acima de tudo, Cage é visto como herói “da comunidade” e a série, de forma inteligente, o relaciona ao momento histórico atual dos Estados Unidos. Afinal, o herói passa a maior parte da temporada em fuga da polícia, e sua habilidade de ser à prova de balas o torna capaz de reagir contra os tiras americanos, conhecidos por balear negros sem muita cerimônia.

Há dois vilões na temporada para se contrapor ao herói do Harlem: o primeiro é “Boca de Algodão” Stokes (Mahershala Ali, de House of Cards), dono da boate e traficante de armas; e o segundo é Willis Stryker (o intenso Eric LaRay Harvey). Com o primeiro, estabelece-se um interessante paralelo entre o herói e o vilão. Afinal, o que separa Luke de Stokes, além do dinheiro, claro, é o altruísmo e também o fato de que Luke deseja ajudar a comunidade, enquanto Stokes a explora sob disfarce de bem sucedido. Já entre o herói e Stryker, a motivação é clichê e a inimizade, mais rasa, porém Harvey é tão divertido e intimidante com sua cara de maluco que acaba trazendo um senso de diversão ao seriado.

Aliás, este é um dos problemas com a série. Há tanto para se gostar em Luke Cage: a ambientação, o carinho pela cultura negra com o qual o programa foi obviamente feito, o elenco… Colter é carismático; a interessantíssima Simone Missick comanda a tela sempre que aparece como a detetive Misty; Rosario Dawson retorna como a enfermeira Claire e agora participa mais do que em Demolidor e Jessica Jones, e a veterana Alfre Woodard vive com força a dissimulada vereadora Mariah. Até a brasileira Sonia Braga aparece em alguns episódios em participações pequenas como a mãe da Claire. Mas alguns dos personagens sofrem com motivações clichês para as suas ações: Woodard é uma grande atriz, sem dúvida, mas não consegue inteiramente fazer funcionar algumas cenas nas quais a sua personagem é dominada pelas lembranças da sua mãe criminosa… Aliás, num lance um pouco incomum para o Universo Marvel, a atriz aqui não interpreta a mesma personagem que viveu numa breve, mas marcante, cena de Capitão América: Guerra Civil (2016).

Outro sério problema de Luke Cage é o mesmo que afligiu Jessica Jones e Demolidor: o formato de 13 episódios invariavelmente leva a problemas de ritmo. Há uma enorme “barriga” no meio da temporada, com episódios dominados por uma letargia narrativa e momentos de “falsa encrenca” – difícil realmente sentir tensão pela possível morte de Cage quando sabemos que ainda faltam cinco episódios para acabar a temporada. Há alguns meses Stranger Things dominou as atenções dos fãs de seriados, em grande parte por causa da sua narrativa enxuta que condensou toda a trama em oito episódios. O pessoal da Marvel Television poderia aprender com tal estratégia, já que todas as suas séries até agora, apesar de boas, apresentaram momentos de “enrolação” que poderiam ter sido condensados. Afinal, alguns episódios de Luke Cage até ultrapassam a duração de uma hora…

Mesmo assim, os roteiristas merecem crédito por jogarem algumas surpresas ao longo da temporada, e quando os episódios reencontram seu ritmo, Luke Cage é tão boa quanto as outras séries da parceria Marvel/Netflix. Aqui, há até um número maior de diretores de destaque da TV e do cinema comandando os episódios – nomes como Paul McGuigan (da série Sherlock), Vincenzo Natali (do filme Cubo), Guillermo Navarro (diretor de fotografia renomado) e Clark Johnson (das séries Homicide e A Escuta). O quarto episódio, divertido, tem um clima de “filme de prisão” e ainda encontra uma forma interessante de mostrar o herói no seu traje clássico das HQs. E há alguns diálogos inspirados e carregados de potência racial, como a fala do vilão que menciona a abolição dos escravos como motivador para as primeiras leis para armar a população nos Estados Unidos, e outro momento em que Misty define Cage como “um negro perseguido pela polícia armada com balas especiais”.

De fato, Luke Cage é o herói que grande parte da população precisa. No cinema da Marvel vimos alguns personagens negros de destaque, mas sempre na posição de coadjuvantes. Ao fazer de um herói negro, originalmente criado até como estereótipo, um modelo para milhões de pessoas, o estúdio dá um grande passo na direção de maior representação e mais diversidade nas telas – não à toa, a maior parte do elenco é de negros. E claro, a Marvel também começa a adentrar um segmento demográfico ainda não explorado pelo estúdio – afinal, os donos da marca são também muito inteligentes. Mesmo apesar de alguns problemas, ver um herói com uma nova perspectiva e situado num universo diferente, retratado com muito respeito e carinho, é algo refrescante, bastante real e muito humano. Essa humanidade é a verdadeira superforça do seriado.