O cinema de Spike Lee é negro. A afirmação, que embute um sectarismo incômodo nestes tempos de politicamente correto, não é minha, e sim do próprio diretor.

Um dos últimos cineastas realmente políticos, Lee, contudo, é bem maior do que essa controvérsia. Mesmo repetindo a torto e a direito que seus filmes foram feitos por, sobre, e para o público negro, o diretor revelou-se, desde o início, um mestre dos dramas humanos – independente de cor, origem ou ideologia – e do próprio cinema. E, se filmes como A Hora do Show ou Milagre em Sta. Anna carregam na polêmica racial, as grandes obras que fez, dando uma dimensão universal a questões políticas (Faça a Coisa Certa, O Verão de Sam, A Última Noite, O Plano Perfeito), asseguram o seu lugar entre os maiores diretores americanos.

Mesmo com esses clássicos na bagagem, a carreira de Spike Lee tem um ápice claro e indiscutível: Malcolm X (1992). Biografia do ativista político americano, defensor da emancipação dos negros nos turbulentos anos 1960, o filme resume, em suas 3h20m, as virtudes (muitas) da obra de Lee.

 Um verdadeiro tour-de-force de câmera, montagem e música, muito influenciado pelo Martin Scorsese de Os Bons Companheiros, Malcolm X intercala a recriação ficcional de Lee com imagens do próprio Malcolm no seu heyday, produzindo um painel devastador da tensão racial nos Estados Unidos.

 Da juventude como gigolô e escroque, passando para a prisão e sua conversão ao islamismo, até ser eleito a voz-guia de uma geração, ao lado de Martin Luther King, cada episódio importante da vida de Malcolm, nas mãos de Lee, encontra ecos na época em que o filme foi feito, quando a violência das gangues se encontrava no auge e tragédias como os tumultos de Los Angeles sacudiam o país. Através de Malcolm X, Lee chama os jovens negros a se organizarem, a se unirem, a buscar um futuro melhor para si. À parte a exortação política, porém, o filme se impõe por seus atributos artísticos, e pode ser apontado sem medo como um dos 3 melhores da década, junto com o já citado Os Bons Companheiros e com Pulp Fiction, de Quentin Tarantino.

Junto ao roteiro (de Lee e Arnold Perl) e à direção, esse triunfo se deve ao trabalho de Denzel Washington. Na pele do ativista, o ator dá um show de atuação só comparável aos melhores trabalhos de Marlon Brando e Robert De Niro. Denzel, que firmou a sua carreira com esse filme, estudou cada gesto, cada inflexão, cada foto e vídeo de Malcolm X, a fim de incorporá-lo no set. A edição veloz e a brilhante trilha sonora de Terence Blanchard, colaborador habitual de Lee, completam o pacote.

Como todo clássico, qualquer tentativa de apresentá-lo ou descrevê-lo, por melhor que seja (o que não é o caso), acaba soando como uma simplificação brutal. Resta acrescentar que esse filme, como pouquíssimos a que assisti dos últimos 19 anos, deixou uma marca emocional tão profunda ao fim da sessão. Se puder assisti-lo, não perca tempo!

Nota: 10,0